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João Paulo Batalha
15.01.2021

Era preciso matar alguém

As eleições presidenciais arriscam-se a ser pouco mais do que um simulacro, conduzido num país que encolhe os ombros e passa à frente. E não, a culpa não é toda da pandemia.

Diz uma velha piada que quando consultamos dois advogados temos três opiniões. A ronda de perguntas aos constitucionalistas sobre a possibilidade de adiar as eleições presidenciais deu na velha piada: leituras houve várias, sobre as minudências da Constituição e da lei eleitoral. O constitucionalista Presidente (e candidato) disse que era impossível, outros foram mais prudentes, alguns deram uma no cravo e uma na ferradura. Unanimidade, ou perto, houve nisto: agora é tarde.

Um eventual adiamento das eleições exigiria alguma criatividade jurídica que ninguém quer assumir, uma revisão constitucional que não se pode fazer em estado de emergência e de um dia para o outro, ou opções mais bizarras, como uma catástrofe natural que literalmente destruísse todas as assembleias de voto em todo o país e fisicamente impedisse as pessoas de votar. Ou então morrer alguém. E atenção que morrerem mais de 100 pessoas por dia por causa da Covid não conta. Tinha de morrer um dos candidatos. Aí sim, manda a Constituição que se reabra o processo eleitoral.

Como nenhum candidato quer morrer, e como felizmente nenhum português quer matá-los, sobra o que temos: por mais pessoas que estejam confinadas, por mais estado de emergência que esteja decretado, por mais que o pico da terceira vaga possa acontecer precisamente no fim de semana da eleição, por mais impossível que seja organizar a logística eleitoral, a Constituição não prevê soluções. Acontece aos melhores: a realidade é inconstitucional, mas é a realidade.

Assim como assim, dizem os peritos, vai dar ao mesmo. A pandemia não vai abrandar tão depressa e mais umas semanas não fariam diferença. Questionado sobre o impacto que esta conjuntura explosiva vai ter na abstenção, Marcelo Rebelo de Sousa apela à responsabilidade dos eleitores. Já se adivinha que, quando o número de abstencionistas for anunciado, na noite de 24, o Presidente vai lamentar a apatia do povo e pôr nos ombros dos cidadãos a culpa pela fraca participação. Há de dizer que tudo o que podia ser feito foi feito, mostrar-se contrito durante meia hora e passar à frente.

Ora, salta à vista que nem tudo (nem perto) o que podia ter sido feito foi feito. Passou quase despercebida a carta enviada ao presidente do Tribunal Constitucional no final de dezembro por três ex-candidatos presidenciais – Paulo de Morais, Henrique Neto e Fernando Nobre. Com a autoridade de quem conhece por dentro o processo eleitoral, os três ex-candidatos apontaram problemas estruturais sérios na eleição presidencial, do processo arcaico de recolha de assinaturas às desigualdades de acesso a debates presidenciais em canal aberto, passando pelas regras de financiamento. As Presidenciais, que deviam ser eleições apartidárias, deixaram-se capturar pelas máquinas dos partidos, dificultando as candidaturas independentes. Problemas de fundo que a pandemia só veio agravar.

Nem de propósito, dias depois desta carta, conhecíamos o caso aberrante do candidato que estará no topo do boletim de voto, apesar de só ter entregue seis das 7500 assinaturas necessárias – não seis mil; seis! Que não haja capacidade para sequer eliminar do boletim os candidatos que não cumprem os mínimos diz muito da forma atabalhoada como toda a eleição está a ser organizada. E não, isto não é culpa da pandemia de coronavírus. É culpa da pandemia de incompetência.

Se nem um boletim limpo conseguimos fazer, como vamos tirar as pessoas de casa num fim de semana onde estarão proibidas de sair para praticamente tudo, menos votar? Como vamos garantir a participação dos emigrantes, se ninguém organizou o voto por correspondência e em muitos países as pessoas estarão também simplesmente proibidas de sair de casa? Vamos encolher os ombros aos milhares de cidadãos que serão expulsos da eleição porque cairão em isolamento fora dos prazos em que podem pedir o voto em casa? Como vão os concelhos organizar a logística de ir a casa das pessoas e aos lares de idosos, se até a Câmara do Porto assume que não consegue organizar essa logística de forma segura? É aceitável que as instruções dadas aos municípios sejam, na prática, um muito português "desenrasquem-se"?

Todos sabemos que a pandemia colocou desafios especiais a todos os países que organizaram eleições. Seria sempre difícil e o resultado seria sempre menos que o ideal. O problema em Portugal é que não se fizeram os mínimos. Ninguém preparou soluções claras, eficazes e bem capacitadas, como alargar os dias de votação ou organizar o voto postal. A própria discussão sobre um eventual adiamento só surgiu a duas semanas da eleição! Vai ser uma balbúrdia e a única coisa que tornará a votação governável será a enorme abstenção. O recorde vergonhoso que se anuncia será não só o retrato de um estado de saúde pública frágil, mas de uma democracia doente.

PS: Como leitores e cidadãos temos o direito – até o dever – de exigir que os jornalistas investiguem, sejam exigentes e sacrifiquem tempo, talento e esforço a desenvolver fontes, questionar narrativas e trazer-nos a verdade. Pedir-lhes que, em cima disso, aceitem ser seguidos, vigiados e terem as suas contas bancárias devassadas é pedir demais. Comprometo-me a escrever sobre o tema que faz a capa da SÁBADO desta semana, mesmo que entretanto passe de moda e saia do ciclo mediático – porque isto é um sinal de alarme de primeira importância sobre a saúde do nosso Estado de Direito. Para já, solidarizo-me com os jornalistas espiolhados e homenageio o jornalismo livre que praticam. O único que vale a pena. Obrigado.

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