A ressureição de José e Blanca
O livro de Cercas, "O Louco de Deus no Fim do Mundo" é a procura da justificação da ressurreição plena dos corpos entre os crentes católicos, mas assenta num equívoco.
"Vale a pena ser humilde", disse-lhe ela, num daqueles momentos em que a vida se esvai e parece iludir a demência de Alzheimer.
Javier Cercas lembrara-se disso, em Girona, na Catalunha, no último dia de sua mãe, Blanca Mena.
Debitavam-se os dias de Dezembro que faltavam para o Natal de 2024 a que Blanca Mena já não chegaria, e Javi escrevia ainda o relato da viagem que fizera à Mongólia, um ano antes, com o Papa Francisco.
O convite fora inesperado e chegara na Primavera de 2023.
Talvez tivesse a ver com a disponibilidade de Cercas – ateu, anticlerical, laicista – para debates sobre religião, catolicismo e cultura.
Por certo importara a relevância de Cercas nas letras de língua espanhola e a maestria em assomar a distanciamentos propícios para deslindar temores, impostoras e equívocos que sempre rondam as condenações sumárias em instantes cruciais.
Prometeram-lhe carta branca para falar com quem quisesse e escrever o que bem entendesse e, eventualmente, alguns momentos a sós com o Papa Francisco.
Uma tentação
Era, enfim, uma tentação capaz de levar à conversão do ímpio, ironizara, então, Mercè Mas, esposa complacente do romancista heterodoxo que renegara a fé católica aos 14 anos.
No tom muito próprio a mulher com vida feita no teatro, que há muito conhece o homem com quem vive, foi isto o que Mercè alvitrou.
Andou perto.
Ela sabia, obviamente, que uma justificação maior é sempre a verdadeira tentação do romancista e Cercas guardava-a na palma da mão.
Iria à Mongólia na condição de perguntar ao Papa se Blanca Mena, que amara o esposo, José Cercas, acima de tudo – mais do que os próprios cinco filhos –, se reencontraria com ele, corpo inteiro e alma plena.
Era a crença inabalável de Blanca na vida no Além, sem mediação racional, por amor de José.
O livro de Cercas "O Louco de Deus no Fim do Mundo" é a procura da justificação da ressurreição plena dos corpos entre os crentes católicos, mas assenta num equívoco.
Cercas poderia evocar a Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios: «Se Cristo não ressuscitou, então a nossa pregação é vã e também é vã a vossa fé», mas arriscou a indagação da vida eterna e a interpretação do Pontificado de Francisco.
Acabou por encontrar Jorge Bergoglio e, também, Francisco, personagens dissonantes com a imagem e biografia de um jesuíta que em tempos relegara a sobranceria para, condenando a ideia de poder clerical, se consagrar à devoção e serviço missionário dos desvalidos.
Em longas e, frequentemente repetitivas passagens, Cercas deambula, pela Cúria Romana, ainda antes de acompanhar Francisco na viagem à Mongólia, de 31 de agosto a 4 de setembro de 2023.
Cercas, por vezes, dobra uma esquina, tem um cardeal pela frente e "a afinidade é imediata".
Afinal o que importa
Aconteceu com o português José Tolentino, Prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação, por causa de versos de Mário Cesariny: "Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício e cair verticalmente no vício".
"Pastelaria".
Deste poema desabusado dos anos cinzentos da década de1950 a conversa flui e o mesmo acontecerá no encontro com Víctor Manuel Fernández, o irreverente argentino herdeiro da Inquisição, Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé.
Ao escritor, nascido na Estremadura e criado na Catalunha, deslumbra a importância da elevação espiritual de uma missão diminuta num mundo ignoto e distante; um culto ingrato.
Nota-se, no entanto, que Cercas, exímio estilista, falha vezes demais em passagens incongruentes, inconvincentes e deslocadas.
Tropeça, por exemplo, ao tentar manifestar surpresa pela importância geopolítica que Pequim representa para o Vaticano numa viagem papal à Mongólia.
Nota-se o deslize ao escrever que mal dormia ao sobrevoar planícies russas quando, afinal, atravessava as estepes da Cazaquistão e do Xinjiang chinês.
Descai e cai ao fingir ignorar, após muitos livros lidos sobre jesuítas, quem foi Matteo Ricci e o impacto das missões da Companhia de Jesus, a partir do século XVI no Império do Meio.
Eleva-se Cercas, pelo contrário, ao melhor a que está obrigado quando esboça as múltiplas situações em que Jorge Bergoglio foi padre, bispo e cardeal na Argentina peronista e sob a ditadura militar.
A ideia de Louco de Deus como despojamento total à imagem herdada de Francisco de Assis atrai Cercas, por outro lado, e vinga, sobretudo, nos retratos da prática missionária com que se depara na Mongólia.
Deixa de lado, todavia, a crença apocalíptica associada a abjecção e humilhação vinda do cristianismo do século XIII o que lhe permite concluir que ao catolicismo pregado por Jorge Bergoglio é a missão dos pobres que importa.
Os retratos da devoção de missionárias e missionários em meios totalmente alheios ao cristianismo e ao catolicismo levam Cercas a interrogar-se sobre se a Igreja da Santa Sé só tem e e merece o futuro de renúncia missionária.
O mérito que possa representar o devir da Igreja Católica como movimento e prática missionária entre pobres e miseráveis – ignorando a tirada do queniano Jomo Kenyatta sobre outros missionários que levaram as terras e deixaram a Bíblia – leva Cercas a admitir que talvez este seja o rumo possível e desejável para os fiéis de Cristo.
No fim há o fim.
José Cercas, morreu em 1997, Blanca Mena, 27 anos depois, Francisco a 21 de Abril do ano seguinte, em 2025, após o Domingo da Ressurreição.
Depois do fim resta a crença.
O Louco de Deus no Fim do Mundo
Javier Cercas
Tradução: Helena Pitta
Porto Editora, 2025
A ressureição de José e Blanca
O livro de Cercas, "O Louco de Deus no Fim do Mundo" é a procura da justificação da ressurreição plena dos corpos entre os crentes católicos, mas assenta num equívoco.
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