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"A Espera": de um grande trauma, fazer uma novela de esperança

Foi editada em Portugal a novela gráfica de Keum Suk Gendry-Kim que explora o tema da separação de famílias na Coreia depois da guerra entre norte e sul.

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'A Espera': de um grande trauma, fazer uma novela de esperança
Diogo Barreto 26 de dezembro de 2023 às 08:00
Iguana

O tempo não cura todas as cicatrizes. Há eventos e consequências que são de tal forma impactantes que marcam uma pessoa para o resto da vida. É o fenómeno a que chamamos trauma. E é exatamente sobre "trauma" que Keum Suk Gendry-Kim escreveu e desenhou na sua obra A Espera: o trauma de perder a família, de perder a humanidade e de desapontar os que se ama. Mas esta novela gráfica é também sobre esperança.

A Espera, editado na reta final deste ano pela Iguana, continua a tradição da autobiografia ou semi-autobiografia que tem dominado algumas das melhores novelas gráficas das últimas duas décadas - dois exemplos rápidos: Blankets, de Craig Thompson (Devir), e Persépolis, de Marjane Satrapi (Bertrand). Um percurso cuja génese é normalmente atribuída ao sucesso conseguido por Art Spiegelman, que escreveu Maus - a única novela a vencer o prémio Pulitzer - baseando-se na experiência do seu pai enquanto judeu sobrevivente do Holocausto. 

Keum Suk Gendry-Kim escreveu também sobre um evento traumático, a guerra na península coreana na década de 50 que resultou na separação de milhares de famílias, partindo da experiência pessoal da sua mãe. A Espera é um retrato do efeito que a guerra tem nas famílias e numa nação. Afasta as pessoas, cria divisões e destrói núcleos familiares, desde aqueles que veem os seus entes queridos serem enviados para a frente de combate, àqueles que têm de se esconder para não serem recrutados, ou até mesmo àqueles que fogem para nunca mais se encontrarem.

Nas primeiras páginas, encontramos uma mulher idosa, ansiosa por ser escolhida pelo sorteio que ditará se pode reencontrar-se com o filho (em 2018 os governos da Coreia do Sul e da Coreia do Norte organizaram o 21º encontro de famílias separadas pela guerra coreana, uma prática começada já neste século que pretendia unir familiares separados pela guerra). Song Gwija tem 92 anos e sonha reencontrar o filho Kim Sang-il que não vê há mais de 60 anos, acalentando ainda mais a sua esperança depois de descobrir que uma amiga foi selecionada para encontrar a irmã. A hipótese de ser selecionada é mínima e é quase um milagre conseguir-se esse encontro.

Song Gwija foi separada do seu marido e filho mais velho quando seguiam numa caravana em direção a sul para fugirem dos combates. A viagem é árdua e pelo caminho são dados pequenos exemplos de como a sobrevivência é um instinto que se sobrepõe à humanidade em situações de perigo iminente, tema retratado de forma violenta por Charlotte Delbo em Awschwitz e Depois e igualmente por Gendry-Kim nesta obra. 

Keum Suk Gendry-Kim

Song Gwija é mãe de uma artista que há vários anos lhe prometeu que a ajudaria a encontrar o seu filho e sente-se culpada por ter feito uma promessa vã, à qual tem dedicado pouco esforço. E é essa artista que recorda a vida da mãe, num paralelo com a vida de Keum Suk Gendry-Kim.

Numa tese de 2020 intitulada Inventar a vida: autobiografia e autoficção em banda desenhada, Gil Sousa defendia que "após um período de relativo desinteresse, a autoficção tem vindo a revelar a sua relevância na produção contemporânea de obras de escrita de vida" e a novela gráfica não foi alheia a essa tendência, destacando que se observava uma "presença desproporcional" do género autobiográfico "entre as obras mais aclamadas pelacrítica".

Ao contrário das memórias "puramente textuais", as novelas gráficas socorrem-se não apenas da palavra escrita (como o diálogo e a existência de um narrador) para complementar o texto. Gendry-Kim utiliza as pranchas para reforçar a força de cada uma das passagens, muitas vezes com representações abstratas e carregadas de simbolismo (destaque, por exemplo, para a imagem das botas vazias que são deixadas junto a uma árvore frondosa).

Keum Suk Gendry-Kim

Gil Sousa defende, na sua tese, que "acima de todos os mecanismos específicos utilizados pela narrativa gráfica, o papel ativo que o leitor cumpre na construção da leitura permite um maior envolvimento emocional com a narrativa". E em A Espera, o leitor é desafiado inúmeras vezes a fazer pausas na leitura do texto. Não é incomum que, após um episódio mais marcante, a autora coreana introduza um painel sem palavras, mas com um desenho mais forte, o que permite uma pausa para refletir sobre o que acabou de acontecer. Estes momentos contribuem para ajudar à construção de uma identidade da autora e do povo coreano (como personagem coletiva).

Graficamente, a obra de Gendry-Kim destaca-se pelas suas pinceladas grossas, com feições simplificadas e transparentes. Não há qualquer tipo de dúvida sobre os sentimentos de cada uma das personagens a cada um dos momentos (ao contrário do que acontece, por exemplo, em Sabrina).

A autora

Keum Suk Gendry-Kim começou a trabalhar em novelas gráficas depois de completar os estudos em Estrasburgo, França. Traduziu dezenas de novelas gráficas coreanas para francês antes de se aventurar a criar as suas próprias histórias. Estreou-se em 2012 com a obra Le chant de mon père (O canto do meu pai). Mais tarde dedicou-se a escrever sobre a história das escravas sexuais da guerra entre a península coreana e o Japão. Estas mulheres ficaram conhecidas como "mulheres de conforto" e abusadas sexualmente pelos soldados japoneses. Daí resultou o seu livro Les Mauvaises herbes, publicado em 2018 e que será editado pela Iguana em Portugla já em 2024.

É também responsável pela adaptação de Alexandra Kim, a Siberiana, de Jung Cheol-Hoon, para novela gráfica. Um livro sobre a "primeira revolucionária bolchevique coreana que sonhava com um mundo de igualdade", segundo o subtítulo. A Levoir editou esta obra em Portugal em outubro na Coleção Novela Gráfica VII.

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