João Ribeiro (nome fictício), de 42 anos, acorda cedo, confere o currículo que deixa todos os dias num estabelecimento diferente e continua a sua jornada em busca de trabalho. Sabe que os sete anos que passou na prisão tornam tudo mais difícil e é por isso que prefere manter o anonimato. Difícil também é não notar os olhares de censura quando fala do seu passado, admite.
No final da manhã, regressa a casa e a pasta de papéis é substituída por uma caixa com sprays e a roupa formal, por uma jardineira cheia de tinta. Nas suas palavras, João parte rumo ao que "faz sem ser julgado", o muralismo. "Prefiro viver no mundo das artes, porque no mundo real, as pessoas não me aceitam como sou". Dedica os seus murais, pintados na Cova da Moura, Amadora, onde vive desde sempre, a figuras da sua comunidade e à Natureza.
É também neste bairro que se encontra um mural a retratar a cantora e compositora cabo-verdiana Cesária Évora, na Rua do Alecrim. É da autoria do artista plástico cabo-verdiano Joaquim Semedo, que começou a dar os primeiros passos na pintura quando tinha 19 anos e hoje faz "Viagens nas Tintas", através do projeto com o mesmo nome que criou. Fundado para divulgar a cultura cabo-verdiana no país e no mundo, desde 2018 que Joaquim Semedo pinta vários murais com que "tenta inspirar, educar e sobretudo elevar a crença das pessoas nelas mesmas", dando-lhes mais autoestima. Já pintou retratos de Mayra Andrade, Lura, Tito Paris, Sara Tavares, Jorge Barbosa, Baltasar Lopes e Amílcar Cabral.
Inspirar, unir e transformar
É ainda neste bairro do concelho da Amadora que vive Cátia Tavares. A estudante de 22 anos assiste à estigmatização do bairro desde que tem memória por causa da criminalidade, mas também devido à baixa condição socioeconómica dos habitantes e à precariedade dos edifícios. "Parece que a ‘Cova M’ é um terceiro mundo dentro de um primeiro", diz.
No entanto, o ano de 2013 ficou marcado por uma iniciativa da Associação Cultural Moinho da Juventude, que apostou em projetos comunitários e de arte, a fim de causar uma total transformação do bairro. Grafitis e murais foram criados por artistas locais e internacionais com o objetivo de embelezar os espaços públicos e tornar a Cova da Moura num ponto de referência na arte urbana.
Desde essa iniciativa, o bairro "está melhor do que já foi", garante Cátia. "Eu vi o meu bairro ganhar vida por causa destas artes." O espaço passou a receber "visitas de pessoas de outras localidades" o que ajudou quem lá vive "a mudar de mentalidade e a cuidar mais da Cova da Moura", conclui com um grande sorriso.
Ermelindo Quaresma, que esteve envolvido na criação dessa iniciativa e que hoje coordena a Associação de Artistas Urbanos e Transformação Social, fundada em 2019, afirma que "trabalhar, principalmente com e para jovens, conhecer as necessidades que estes têm e usar a arte para fazer isso, é um caminho para a resolução de grandes problemas sociais". Para Ermelindo, a arte urbana "sempre foi e sempre será o que nos faz olhar para a frente e gerar consensos. É com a arte que se molda a sociedade, é através dela que se estabelece a união entre as pessoas", acrescenta.