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Uma viagem pela arte urbana da Cova da Moura

Para moradores e artistas urbanos, o graffiti gera paixões, dá autoestima e “une mundos”. Mas nem todos o adoram.

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Edição de 13 a 19 de agosto
Taila Barros/Universidade Lusófona 20 de agosto de 2024 às 07:00
Fotografia de Taila Barros/Universidade Lusófona

João Ribeiro (nome fictício), de 42 anos, acorda cedo, confere o currículo que deixa todos os dias num estabelecimento diferente e continua a sua jornada em busca de trabalho. Sabe que os sete anos que passou na prisão tornam tudo mais difícil e é por isso que prefere manter o anonimato. Difícil também é não notar os olhares de censura quando fala do seu passado, admite. 

No final da manhã, regressa a casa e a pasta de papéis é substituída por uma caixa com sprays e a roupa formal, por uma jardineira cheia de tinta. Nas suas palavras, João parte rumo ao que "faz sem ser julgado", o muralismo. "Prefiro viver no mundo das artes, porque no mundo real, as pessoas não me aceitam como sou". Dedica os seus murais, pintados na Cova da Moura, Amadora, onde vive desde sempre, a figuras da sua comunidade e à Natureza. 

É também neste bairro que se encontra um mural a retratar a cantora e compositora cabo-verdiana Cesária Évora, na Rua do Alecrim. É da autoria do artista plástico cabo-verdiano Joaquim Semedo, que começou a dar os primeiros passos na pintura quando tinha 19 anos e hoje faz "Viagens nas Tintas", através do projeto com o mesmo nome que criou. Fundado para divulgar a cultura cabo-verdiana no país e no mundo, desde 2018 que Joaquim Semedo pinta vários murais com que "tenta inspirar, educar e sobretudo elevar a crença das pessoas nelas mesmas", dando-lhes mais autoestima. Já pintou retratos de Mayra Andrade, Lura, Tito Paris, Sara Tavares, Jorge Barbosa, Baltasar Lopes e Amílcar Cabral.

Inspirar, unir e transformar

É ainda neste bairro do concelho da Amadora que vive Cátia Tavares. A estudante de 22 anos assiste à estigmatização do bairro desde que tem memória por causa da criminalidade, mas também devido à baixa condição socioeconómica dos habitantes e à precariedade dos edifícios. "Parece que a ‘Cova M’ é um terceiro mundo dentro de um primeiro", diz.

No entanto, o ano de 2013 ficou marcado por uma iniciativa da Associação Cultural Moinho da Juventude, que apostou em projetos comunitários e de arte, a fim de causar uma total transformação do bairro. Grafitis e murais foram criados por artistas locais e internacionais com o objetivo de embelezar os espaços públicos e tornar a Cova da Moura num ponto de referência na arte urbana.

Desde essa iniciativa, o bairro "está melhor do que já foi", garante Cátia. "Eu vi o meu bairro ganhar vida por causa destas artes." O espaço passou a receber "visitas de pessoas de outras localidades" o que ajudou quem lá vive "a mudar de mentalidade e a cuidar mais da Cova da Moura", conclui com um grande sorriso.

Ermelindo Quaresma, que esteve envolvido na criação dessa iniciativa e que hoje coordena a Associação de Artistas Urbanos e Transformação Social, fundada em 2019, afirma que "trabalhar, principalmente com e para jovens, conhecer as necessidades que estes têm e usar a arte para fazer isso, é um caminho para a resolução de grandes problemas sociais". Para Ermelindo, a arte urbana "sempre foi e sempre será o que nos faz olhar para a frente e gerar consensos. É com a arte que se molda a sociedade, é através dela que se estabelece a união entre as pessoas", acrescenta.

Marco Pinto, arquiteto, está a criar uma pequena associação sem fins lucrativos, a "CurArte", para fazer atividades de arte urbana com jovens da Cova da Moura e de outros bairros.

Para o arquiteto, as expressões artísticas não só dinamizam a cultura de uma região, como também oferecem, principalmente aos jovens, "modelos positivos de autoexpressão e sobretudo ferramentas que contribuem para o empoderamento pessoal e social". A CurArte quer realizar iniciativas anuais com jovens de bairros desfavorecidos que, segundo Marco, têm o poder de mudar o "panorama negativo" do mundo através da arte.

Afinal, a arte é um veículo com o "poder de inspirar, unir e principalmente causar transformações sociais", afirma Marco Pinto, por ser "capaz de unir mundos".

Artistas para alguns, vândalos para outros

Em Portugal, a prática do grafite pode ser considerada crime, dependendo dos locais e das circunstâncias onde é realizada. Quando causa prejuízos materiais, principalmente em locais públicos, o grafiti é considerado vandalismo e pode levar a coimas. 

Os limites são muitas vezes ultrapassados. O muro da casa de Conceição Pereira, de 82 anos, já foi inúmeras vezes usado para grafitis. Mora sozinha, em Alverca, também na Área Metropolitana de Lisboa e nunca conseguiu identificar aqueles a quem chama de "desocupados e sem cultura nenhuma": "Parece que todo o espaço que esses 'pintores’ têm, não é suficiente". E deixa um apelo ao "bom senso dos jovens e ao abandono dessas banalidades". 

Os tags são as assinaturas estilizadas que se veem um pouco por todo o país e pelo mundo. Têm o seu próprio movimento, onde "cada integrante tem um conjunto de regras e motivações a seguir", esclarece Susana Caetano, artista urbana de 17 anos que já deixou a sua marca em muros, túneis e paredes de prédios abandonados em Chelas e Marvila, entre outros locais. "Quanto mais visibilidade e risco tiver o local onde os tags são criados, mais prestígio e respeito tem o artista", ressalva.

*Artigo escrito por uma aluna da licenciatura em Comunicação e Jornalismo da Universidade Lusófona, editado por Leonor Riso, ao abrigo da parceria com a Medialivre.

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