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Sempre foi generoso e atencioso, mas não é de partilhar o que sente, muito menos a razão pela qual o sente. Conheço o riso do meu pai há muitos anos, e conheço-lhe a gargalhada, o riso que vem quando alguma coisa o apanha de surpresa.
O MEU PAI PERTENCE a uma geração em que as emoções eram coisas que andavam cá por dentro, mas nunca ganhavam o território da boca. Ficavam ali, à porta do corpo, e depois voltavam resignadas para dentro, na esperança que chegasse o dia delas. O meu pai esteve na guerra em Angola e viu muita coisa. Naqueles tempos de guerra via-se mais num dia do que uma pessoa em tempos de paz via na vida inteira. Aquilo é ferrugem que fica ali dentro, há coisas que não se conseguem esquecer, podem é arrumar-se durante algum tempo num canto qualquer para ver se ninguém dá por elas, se ficam adormecidas nos pesadelos. O meu pai sempre tomou conta das emoções o melhor que sabia; perdeu os pais muito cedo e já não foi a tempo de aprender com eles. Sempre foi generoso e atencioso, mas não é de partilhar o que sente, muito menos a razão pela qual o sente. Conheço o riso do meu pai há muitos anos, e conheço-lhe a gargalhada, o riso que vem quando alguma coisa o apanha de surpresa. Até que um dia a minha filha mais nova nasceu e aconteceu um milagre. Dentro do meu pai surgiu uma gargalhada que eu nunca antes tinha ouvido. Nem eu, nem ninguém. Uma gargalhada nova, um som que enrola lá dentro, nas profundezas de sítios que nunca antes tinham visto luz. Quando a ouvi pela primeira vez achava que se tinha enganado, que andava a experimentar um riso novo e não tinha dito nada a ninguém. Depois fui por exclusão de partes e comecei a perceber que havia pessoas que não só nunca a tinham ouvido, como nem sequer sabiam do que estava a falar. Até que um dia os apanhei frente a frente e lá estava ela, a gargalhada nova que eu julgava ter sonhado. Mal ele olha para ela, a cara começa logo a esticar toda, deslumbrado com aquela pequena pessoa. Depois fica com o corpo todo à beira do abismo, à espera do momento certo, e de repente ela aparece, a gargalhada nova contorce-lhe o corpo, sai em espasmos, em cadências de som que nunca tinham saído daquele corpo, como se o mundo inteiro explodisse em alegria. Descobrir uma gargalhada nova numa idade destas é uma sorte que não toca a todos. Eu, que nunca a tinha ouvido, ouço-a agora como o som mais bonito que nasceu de dentro de alguém. Como é que um som pode ficar 72 anos escondido dentro de uma pessoa?
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"O afundamento deles não começou no Canal; começou quando deixaram as suas casas. Talvez até tenha começado no dia em que se lhes meteu na cabeça a ideia de que tudo seria melhor noutro lugar, quando começaram a querer supermercados e abonos de família".