Proibir a apanhada? A infância no banco dos réus
Que tipo de sociedade estamos a construir quando recorremos aos tribunais para tentar proibir a apanhada?
O recente caso levado aos tribunais por uma mãe que pretendia obter indemnização e, na prática, uma condenação implícita do próprio jogo da apanhada, é mais do que um litígio isolado sobre um acidente no recreio.
É um espelho do nosso tempo: uma sociedade que se tornou intolerante ao risco, ansiosa perante a imprevisibilidade e disposta a medicalizar, regulamentar ou judicializar até que sempre foi a essência da infância: Brincar, correr, cair e levantar-se.
O Supremo Tribunal de Justiça rejeitou a tese de que a apanhada constitui “atividade perigosa”. Era, juridicamente, a única solução. Não há norma que permita tratar um jogo infantil tradicional como se fosse uma atividade de risco especial. Cair numa perseguição lúdica não é um desvio anormal do curso das coisas: é o curso normal da infância. Exigir que a escola impeça a apanhada ou garanta vigilância milimétrica é pedir aos professores o impossível e retirar às crianças o direito à experiência.
Mas para além da questão jurídica está a leitura social. Este caso ilustra aquilo a que a literatura sociológica chama, desde os anos 90, o fenómeno dos “pais helicóptero”: adultos que orbitam permanentemente sobre os filhos, antecipando riscos, monitorizando cada passo, controlando cada contexto e acreditando que só a hiperproteção garante segurança. A intenção é boa; o efeito, nem por isso.
Crianças que não enfrentam pequenos riscos acabam por não aprender a autorregulação emocional, a capacidade de decisão, a noção de perigo real e, acima de tudo, a resiliência. Se retirarmos da infância o tropeção, o arranhão e o imprevisto, teremos adolescentes e adultos incapazes de lidar com frustração, erro e responsabilidade.
A escola, por sua vez, fica prisioneira deste clima de medo. Cada recreio transforma-se num potencial campo minado jurídico. Cada queda pode ser interpretada como falha disciplinar. A litigância hiperprotetora corrói a confiança na relação escola-família e coloca os profissionais num estado de permanente defensividade.
Do ponto de vista jurídico, o acórdão do STJ recoloca as coisas no seu devido lugar. Não existe, nem pode existir ,uma obrigação de “risco zero”. A responsabilidade das escolas é uma responsabilidade de meios, não de resultados: garantir vigilância adequada, um espaço seguro e razoável, e prevenir perigos anormais.
Mas a questão mais profunda é: que tipo de sociedade estamos a construir quando recorremos aos tribunais para tentar proibir a apanhada?
Por que motivo transformamos a infância num projeto de gestão de risco?
Por que vemos no simples ato de correr uma ameaça, e não um exercício de liberdade?
Os pais-helicóptero surgem de um mundo hiperacelerado, competitivo, cheio de inseguranças, onde tudo parece perigoso e todos têm medo de falhar. Mas há um paradoxo cruel: quanto mais tentamos eliminar o risco da vida dos nossos filhos, mais vulneráveis eles se tornam à vida real.
A escola é, e deve continuar a ser, um dos poucos espaços onde as crianças podem testar limites com segurança, aprender regras de convivência, negociar conflitos e enfrentar pequenos desafios. Proibir a apanhada não é proteger crianças. É amputar a sua autonomia.
O Direito não pode ser usado como ferramenta de controle excessivo da infância. A função dos tribunais não é legislar brincadeiras, mas garantir que a liberdade de brincar não é indevidamente restringida.
A infância não é um protocolo de segurança, é um território de descoberta. E os pais, e a Sociedade, têm de aprender a descer do helicóptero.
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