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Paulo Lona Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
07.10.2025

Inquérito e investigação de magistrados: Especulação e Desinformação

Pergunto-me — não conhecendo eu o referido inquérito arquivado que visaria um juiz — como é que certas pessoas e associações aparentam possuir tanto conhecimento sobre o mesmo e demonstram tamanha convicção nas afirmações que proferem.

Ultimamente, tenho assistido a muitos comentários sobre um inquérito arquivado que visaria um juiz.

Pergunto-me — não conhecendo eu o referido inquérito — como é que certas pessoas e associações aparentam possuir tanto conhecimento sobre o mesmo e demonstram tamanha convicção nas afirmações que proferem.

Será que estas pessoas ou entidades sabem, de facto, qual foi o objeto desse inquérito?

O que estava em causa na investigação?

Que diligências foram ou não realizadas?

Se tais diligências eram necessárias e pertinentes?

Quanto tempo demoraram a ser efetuadas e se poderiam ter sido realizadas noutra ocasião?

Se houve ou não vigilâncias e qual a sua justificação?

Se foram praticados atos que implicaram a intervenção de um juiz de instrução criminal?

Se seria possível concluir esse inquérito mais cedo?

Caso exista reserva quanto à informação nele contida, qual a razão dessa reserva?

Será que há necessidade de proteger determinados elementos do processo, por poderem prejudicar o próprio visado na investigação?

É fundamental, por isso, que se escude a discussão pública sobre temas sensíveis na ponderação e no conhecimento dos mecanismos legais em vigor.

Julgamentos precipitados, conclusões apressadas e comentários infundados servem apenas para alimentar a desinformação e fragilizar os princípios do Estado de Direito.

Vamos então analisar aqui algumas questões relevantes e que têm induzido em erro alguns ou feito passar informações enviesadas e que condicionam a percepção pública.

Começando por aquilo que é mais básico.

Na fase de inquérito, conduzida pelo Ministério Público com o apoio dos órgãos de polícia criminal, procura-se apurar a existência de um crime, identificar os seus autores e recolher provas. O objetivo é reunir elementos suficientes para fundamentar uma decisão de acusação, arquivamento ou suspensão provisória do processo.

Se os indícios forem fracos ou inexistentes, o Ministério Público opta pelo arquivamento do inquérito. É importante notar que o arquivamento não implica necessariamente que não tenha ocorrido um crime, mas sim que não foi possível reunir provas suficientes para sustentar uma acusação com perspetivas razoáveis de condenação em tribunal.

Uma outra questão relevante é que o estatuto processual de um denunciado difere daquele de um arguido.

É fundamental distinguir entre diferentes categorias de pessoas envolvidas ou mencionadas numa investigação. Esta distinção é crucial para compreender o processo penal e evitar equívocos sobre o estatuto legal de cada indivíduo.

Em primeiro lugar, temos os suspeitos contra os quais existem indícios fundados da prática de um crime. Quando estes indícios são suficientemente sólidos, o suspeito é formalmente constituído como arguido. Este estatuto confere-lhe direitos e deveres específicos no âmbito do processo. Entre os direitos, destacam-se o de estar presente nos atos processuais que lhe digam respeito, o direito de audiência, o direito ao silêncio (que não pode ser interpretado como admissão de culpa), o direito a assistência jurídica e os direitos de intervenção e recurso.

Por outro lado, existem pessoas que, embora inicialmente suspeitas, não são constituídas como arguidos por falta de provas que justifiquem tal ação. Estas permanecem como meros suspeitos, sem o estatuto formal de arguido (nem sempre assim foi, antes bastava uma denúncia para que o denunciado fosse necessariamente constituído como arguido).

Esta distinção é relevante para a lei processual penal no que respeita às notificações dos despachos de arquivamento de inquéritos.

Segundo o artigo 277.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, o despacho de arquivamento deve ser comunicado ao arguido (mas já não ao suspeito), ao assistente, ao denunciante que tenha facultado a possibilidade de se constituir assistente, bem como àquele que tenha manifestado a intenção de deduzir um pedido de indemnização civil nos termos do artigo 75.º, incluindo ainda o respetivo defensor ou advogado.

Apesar de alguns “protestos” públicos pela falta de notificação de um despacho de arquivamento em processo em que foi investigado um juiz – que nunca terá tido a qualidade de arguido mas apenas de suspeito, não me recordo de ter sido alguma vez apresentada qualquer proposta para alterar a legislação sobre esta matéria; caso haja efetiva vontade de mudança, o caminho correto é propor a revisão do artigo do Código de Processo Penal aplicável, em vez de fazer críticas públicas pela ausência de comunicação ao magistrado suspeito visado.

Vejamos ainda uma questão pertinente: Quando magistrados, judiciais ou do Ministério Público, são suspeitos de prática de crimes, aplica-se um regime processual específico previsto na lei.

O artigo 265.º do Código de Processo Penal estabelece que, neste caso, a investigação é conduzida por um magistrado de categoria igual ou superior à do visado, visando proteger a independência, a dignidade e o prestígio das funções jurisdicionais.

Este regime visa prevenir pressões (externas ou internas), proteger a função jurisdicional, salvaguardar a independência do poder judicial e preservar o prestígio da função de juiz ou de magistrado do Ministério Público.

Este modelo garante um tratamento equilibrado e transparente, com todas as garantias processuais, sem abdicar do escrutínio rigoroso dos atos praticados pelos magistrados, tal como sucede com quaisquer outros titulares de cargos públicos. A investigação segue as regras do processo penal e, devido à natureza da função, estes inquéritos são frequentemente sujeitos a elevado grau de sigilo, visando proteger a dignidade e a reputação de todos os intervenientes.

As denúncias ou queixas contra magistrados podem ser apresentadas de forma identificada ou anónima, dando origem à abertura de inquéritos conduzidos pelo Ministério Público junto dos Tribunais da Relação — através dos Procuradores-Gerais Adjuntos nas Relações do Porto, Guimarães, Coimbra, Lisboa ou Évora — quando estejam em causa Procuradores da República ou juízes de direito (1.ª instância). No caso de Procuradores-Gerais Adjuntos ou juízes desembargadores (2.ª instância), a competência pertence ao Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça, concretamente aos Procuradores-Gerais Adjuntos ali em funções.

Nesses inquéritos as diligências investigatórias que contendem com direitos, liberdades e garantias – ou dito de outra forma – mais intrusivas – carecem de autorização de um juiz de instrução criminal, que avalia da verificação dos pressupostos necessários e dos indícios existentes. No caso de investigações a magistrados estamos a falar de juízes desembargadores (junto do Tribunal da Relação) ou juízes conselheiros (junto do Supremo Tribunal de Justiça) que exercem uma função fiscalizadora.

A localização do telemóvel de um suspeito, que é referida nas notícias publicadas sobre esta matéria (investigação a um juiz), a ter ocorrido, exigiu a autorização de um juiz desembargador, devido ao elevado grau de ingerência na vida privada, constitucionalmente protegida. A recolha e conservação de dados de localização, bem como o acesso a metadados para efeitos de investigação criminal, só podem ser realizados mediante decisão judicial, especialmente quando estejam em causa crimes graves.

*

Mais uma vez, como sucede com frequência, tem-se debatido a questão das denúncias anónimas. Importa salientar que muitos processos que resultaram em condenações ou que se encontram em fase de julgamento tiveram origem em denúncias desse tipo (existindo vários canais online que possibilitam essas mesmas denúncias anónimas).

O Ministério Público só deverá instaurar inquérito se da denúncia constarem factos concretos que permitam extrair indícios de prática criminal. A decisão de não instaurar inquérito apenas se justifica quando faltem condições de procedibilidade (como a apresentação de queixa ou a constituição de assistente) ou quando os factos denunciados sejam tão vagos e imprecisos que inviabilizem qualquer investigação.

Alguns comentadores, segundo o que se ouve e lê na comunicação social, defendem que o Ministério Público apenas deveria iniciar uma investigação quando já estivesse seguro — ou quase seguro — da ocorrência de um crime e da identidade dos seus autores.

Mas não é precisamente esse o objetivo do inquérito?

Apurar a verdade material, identificar factos suficientemente indiciados e, a partir daí, determinar se foi cometido algum crime e, em caso afirmativo, quem são os responsáveis.

O facto de qualquer investigação criminal começar com a abertura de um inquérito constitui, por si só, uma garantia para a sociedade e para os próprios visados, assim como o é a exigência de que determinados atos que mais interferem com direitos, liberdades e garantias dependam de autorização judicial por parte de um juiz de instrução criminal.

Por fim, importa deixar expressa uma nota de estranheza relativamente aos apelos ao escrutínio de processos penais na praça pública — tanto mais quando tais apelos partem de quem conhece bem a lei processual penal e detém responsabilidades nesta matéria.

O escrutínio dos processos penais não se realiza na praça pública, mas através dos mecanismos próprios e legalmente previstos.

Quando se faz um apelo para que o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) intervenha na fiscalização de processos concretos, é essencial, antes de mais, conhecer as efetivas competências deste órgão.

O CSMP é, em Portugal, o órgão de gestão e disciplina da magistratura do Ministério Público, competindo-lhe, entre outras funções, a nomeação, colocação, promoção, transferência, exoneração e avaliação do mérito dos magistrados, bem como o exercício da ação disciplinar sobre os mesmos.

Embora o Conselho possa, em determinados casos, apreciar questões relacionadas com processos concretos, essas competências restringem-se a matérias de natureza disciplinar, de gestão de quadros, de avaliação de mérito ou a situações expressamente definidas nas normas reguladoras do Ministério Público.

Não se inclui entre as suas atribuições a reapreciação de processos arquivados apenas porque alguém deles discorde. Nesses casos, a intervenção cabe à hierarquia do Ministério Público, nos termos previstos no Código de Processo Penal e no Estatuto do Ministério Público.

*

Alguns sustentaram ainda que se terá procurado condicionar um magistrado judicial através de uma investigação.

Não se compreende, contudo, como tal condicionamento poderia ocorrer numa situação em que o próprio, sendo apenas denunciado, nunca foi notificado do despacho de arquivamento proferido no termo da investigação.

Se o magistrado visado nunca teve conhecimento do processo, de que forma poderia este tê-lo condicionado?

Como pode alguém ser influenciado por algo que desconhece? Ainda mais quando – segundo a perspetiva conspiratória de alguns – esse seria precisamente o objetivo do Ministério Público. Há, nesta lógica, uma evidente falta de sentido.

*

Afinal, somos todos iguais perante a investigação criminal ou haverá quem deva ser “menos igual” do que os outros?

Um dos princípios fundamentais de qualquer Estado de Direito é a igualdade de todos os cidadãos perante a lei — sejam deputados, magistrados, médicos, engenheiros ou eletricistas.

Custa acreditar que alguém pretenda instituir um regime de exceção para as investigações que envolvem magistrados — e menos ainda que tal ideia possa partir dos próprios.

Num verdadeiro Estado de Direito, a legitimidade das instituições de justiça assenta no cumprimento rigoroso das regras processuais, na independência dos magistrados e na qualidade e responsabilidade da informação transmitida ao público. Transformar as investigações em arenas de opinião ou suspeição apenas contribui para descredibilizar o sistema e enfraquecer a confiança dos cidadãos.

O inquérito é uma fase de averiguação e não de condenação; serve para apurar se há crime e quem são os seus autores, nunca para alimentar narrativas especulativas. Garantir a serenidade, a objetividade e o

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