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Paula Cordeiro Especialista em comunicação
29.09.2025

Uma distopia chamada realidade (insustentável)

O debate sobre rendas já não é sobre rendas, menos ainda sobre política habitacional. É, cada vez mais, reflexo da distorção que a tecnologia provoca na percepção da nossa realidade.

Quando achamos que já vimos, ou ouvimos tudo, eis que nos conseguem surpreender. Infelizmente, não pela positiva. Mas, visto por outro prisma, é entretenimento ao melhor nível. Comédia subtil, produzida com detalhes de inteligência e requintes de malvadez que nos fazem rir de tão absurdo que é. O único problema é que não é ficção. É a (dura) realidade. 

Se, por um lado, escolhi abandonar os temas do quotidiano a favor da influência da tecnologia nas nossas vidas, por outro, há episódios desta comédia impossíveis de ignorar. Este das rendas até 2300€ é dos melhores dos últimos tempos e deixa qualquer um a pensar ‘será que percebi?…’ E a maior parte, provavelmente, não percebeu porque é o “até” que faz a diferença. A questão coloca-se porque o Governo definiu o valor de 2.300 euros como "renda moderada”, para atribuir benefícios fiscais aos proprietários. Estalou o verniz com a palavra  “moderada” e muitos adoptaram a ideia de que uma renda de 2300 euros seria uma renda moderada. Será? Começou, assim, o debate. Sobre rendas, imóveis para arrendar (ou as falta deles). Rendas “moderadas” e baixos rendimentos. Argumentos de um lado, e do outro, afirmam que existem imóveis para arrendar abaixo do valor “moderado”, outros lembram que esse valor é “até” e que implica benefícios fiscais para os proprietários, muitos lembram que as rendas atingiram valores incomportáveis para a maior parte dos cidadãos e que o problema são os baixos rendimentos. Poderia escrever indefinidamente sobre esta relação, a ganância, o pragmatismo e a realidade mas, cada vez mais, temos o problema e a sua ampliação online. Ninguém se entende, ninguém ouve, ninguém se cala. Todos falam para um imenso vazio criando um eco inaudível e insustentável. Vale a pena? Cada vez menos.

Na actualidade, existe o problema e, depois, a sua amplificação online que reflecte a forma como as pessoas estão tão centradas sobre si próprias e a sua visão do mundo.  Estão a ver a árvore, ignoram a floresta. O episódio tinha uma questão concreta, delimitada e discutível que se perdeu na discussão digital. E perder-se o sentido da conversa também resulta dos objectivos que quem lança o tema para a praça pública, comunicando de uma forma que contribui para os subterfúgios na comunicação. É, no fundo, um “até” que faz a diferença, tornando-se no combustível para a indignação digital, materializado em cliques, partilhas, comentários. Nas plataformas digitais todos querem a última palavra, mas ninguém quer realmente escutar. O debate deixa de ser sobre rendas, rendimentos ou soluções. Passa a ser sobre a reacção da reacção, numa comédia sem guião, um enorme improviso até se perder o fio da narrativa. 

A habitação, como a saúde ou a educação, deixou de ser o problema. O vídeo que também está em circulação, de uma cidadã que questiona o Primeiro-Ministro, sem ouvir ou conseguir fazer-se ouvir, passa a espectáculo viral, transforma-se no soundbite e ficamos sem saber qual a solução (se é que existe). 

Porque importa esta amplificação do debate sobre rendas? Porque além de humana, é sobretudo, automatizada. Em 2024, os bots representaram boa parte do tráfego na internet, com uma crescente presença nas redes sociais, onde podem gerar interações falsas que distorcem o conteúdo e influenciam algoritmos. Estes bots, quase sempre disfarçados de cidadãos indignados, alimentam a indignação colectiva, amplificam a desinformação e a polarização. O debate sobre rendas já não é sobre rendas, menos ainda sobre política habitacional. É, cada vez mais, reflexo da distorção que a tecnologia provoca na percepção da nossa realidade. Neste universo dominado por bots, o real e o manipulado confundem-se. A habitação deixou de ser o problema. O verdadeiro problema é a própria distopia. Insustentável.

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