O Lamento dos Saloios (ou porque devemos ler J.D. Vance)
O problema é comum ao de tantas outras crianças que cresceram durante o ocaso do “sonho americano” e que também se nota na Europa: o fim da esperança em ter uma vida melhor que a dos seus pais.
J.D. Vance é uma pessoa horrível e escreveu um livro tremendo. Sim, é possível apreciar e elogiar coisas feitas por gente de quem não gostamos. Por exemplo, eu detesto a postura agressiva e desumana de J.K. Rowling, autora da famosa sagaHarry Potter, em relação às pessoas transgénero. Mas não é por isso que dou menos valor à sua obra, nem desqualifico todo um mundo de sonhos e encantos que ela levou a milhões de crianças por esse mundo fora com a história do seu pequeno feiticeiro de óculos redondos e uma cicatriz na cabeça.
Este não é um texto sobre separar o autor da sua arte. Até porque, no caso de J.D. Vance, a vida do autor é a sua obra. Para os mais distraídos, estamos a falar do candidato a vice-presidente de Trump na corrida à Casa Branca no próximo dia 5 de novembro. Vance é um troca tintas, populista, e é perigosamente inteligente. É justamente por isso que devemos ler o seu livroHillbilly Elegy: A Memoir of a Family and Culture in Crisis.
O livro conta a experiência de vida de Vance, que cresceu no seio de uma família pobre, orgulhosa, trabalhadora e branca, algures na América profunda.
Não descarto o seu cinismo, e até o potencial de ter instrumentalizado a sua vida e a sua comunidade para chegar ao poder. Mas é impossível ler o relato da sua infância complicada e miserável sem admirar a sensibilidade e compaixão na forma como descreve as dificuldades e as dores em que cresceu. Criado num agregado familiar disfuncional – filho de um pai que o abandonou aos seis meses e de uma mãe alcoólica e toxicodependente – acabou a viver com os avós, pessoas humildes, mas que ainda puderam testemunhar e usufruir da promessa de que o trabalho honesto era suficiente para os libertar da pobreza.
O retrato do autor é comum ao de tantas outras crianças que cresceram neste momento de ocaso do sonho americano. Este é um relato importante, até porque cada vez mais as novas gerações têm piores condições de vida que os seus pais. Por exemplo, 90% dos Americanos nascidos nos anos 40 tinham rendimentos mais altos do que os seus pais; já no caso dos que nasceram na década de 80, esse número desceu para cerca de 50%. Como demonstrou o meu amigo Yonatan Berman do King’s College London, este problema não acontece só nos Estados Unidos: também no Reino Unido, França, Finlândia, Austrália e Canadáas gerações mais novas tiveram menos oportunidades, porque viveram em períodos de menor crescimento económico e maior desigualdade de rendimentos.
Além disso, Vance é um homem branco, americano, loiro e de olhos azuis. E talvez uma das discussões mais importantes seja a separação entre as diferentes classes sociais, uma conversa que se perdeu nos últimos anos, em parte por causa de um maior foco nas (mais do que legítimas) discussões identitárias. Ele descreve bem como a sua vida em nada se identifica com os americanos brancos protestantes de classe alta aristocrática de Boston e Nova York. Na sua opinião, Barack Obama, filho de dois licenciados e sempre com o seu fato e gravata, está mais próximo desse estrato social do que dele, que cresceu rodeado de pessoas que passavam o dia de fato-macaco. Isto se tivessem a sorte de ter um emprego.
Também entre os pobres da sua própria classe trabalhadora branca há uma distinção claríssima e fundamental no livro, que é o enorme fosso entre os "pobres que trabalham" e "os pobres que não trabalham" e que "vivem de subsídios." Esta é talvez uma das ideias-chave do livro, que justifica tanta polarização e a crescente luta nas sociedades ocidentais entre grupos, entre o "nós" e o "eles".
Há uma frase logo no início do livro que resume bem este conceito: "Americans call them hillbillies, rednecks, or white trash. I call them neighbours, friends, and family". "Hillbilly" é um termo depreciativo, usado para descrever os americanos oriundos das montanhas Apalaches que trabalhavam nas fábricas e na indústria mineira. "Rednecks" é também uma referência a trabalhadores brancos rurais que ficavam com os pescoços escaldados por trabalhar nos campos.White trashé isso mesmo, "lixo-branco", um termo usado novamente para descrever operários, camponeses, e lavradores brancos, tidos pelas classes altas como pessoas pouco educadas e rudes. Em Inglaterra, onde vivo, o termo "Gammon" que é uma espécie de "fiambre de porco" é usado desde o séc. XIX também para aludir às bochechas rosadas e escaldadas de pessoas pobres e pouco educadas. No século XXI o termo ganhou de novo popularidade para caricaturar pessoas da direita reacionária que defendiam o Brexit.
Em Portugal, um "hillbilly" é um "saloio", um termo pejorativo atribuído historicamente às pessoas nascidas na região entre Lisboa e Mafra que trabalhavam no campo e traziam hortaliças para a cidade. Mais tarde, foi adaptado como um insulto classista contra pessoas do campo tidas como pouco sofisticadas; um preconceito ainda hoje tão presente na vida política de um país cujo Presidente da República, oriundo da aristocracia lisboeta, apelida o seu Primeiro-Ministro de "rural".
O livro saiu em 2016, mas só este verão tive oportunidade de o ler. Não se trata de um voyeurismo da pobreza e muito menos de uma condescendência que tanta gente tem "para perceber por que é que o povo vota assim". Pelo contrário, é um contributo válido na primeira pessoa, tal como o excelente livroRegresso a Reims, do filósofo francês Didier Eribon também ele oriundo da classe trabalhadora. São obras que ajudam a retratar muitas das tensões sociais que têm marcado os Estados Unidos e a Europa num ano de tantas eleições.
Ironicamente, muitas das pessoas ditas "sofisticadas" e "letradas" a quem tenho sugerido o livro ficam estupefactas e até ofendidas com a possibilidade de J.D. Vance ter escrito um bom livro, recusando-se liminarmente a lê-lo. O episódio mais caricato ocorreu ainda ontem, na véspera de escrever esta crónica: no fim de uma conferência com cientistas e investigadores portugueses em Londres, um desses académicos ficou de tal forma boquiaberto com a minha sugestão literária que questionou a capacidade intelectual de J.D. Vance escrever e afirmou liminarmente que tinha de ter sido escrito por um "ghost-writer". Além de ser uma atitude profundamente anti-científica, não percebo como é que se pode ser tão crítico de uma coisa que nunca se leu.
E o pior é que falha no essencial: só podemos acreditar firmemente nas nossas convicções se conhecermos as posições contrárias a elas. Além de classistas, os maiores "saloios" e pessoas verdadeiramente ignorantes são eles, que se recusam a ler e a conhecer a opinião e experiência de vida de uma pessoa só porque não gostam dela.
Os burros
O primeiro-ministro deixou os alunos para trás e concentrou-se em ações policiais que perseguem imigrantes. Não só se esquece das crianças, como falhou uma das lições básicas do Natal: Jesus nasceu pobre, cresceu como refugiado, e morreu condenado por um crime que não cometeu.
Os domingueiros
As greves têm impacto nas aprendizagens dos alunos e prejudicam mais os alunos mais vulneráveis.
O Lamento dos Saloios (ou porque devemos ler J.D. Vance)
O problema é comum ao de tantas outras crianças que cresceram durante o ocaso do “sonho americano” e que também se nota na Europa: o fim da esperança em ter uma vida melhor que a dos seus pais.
Novo ano letivo: como escolher a melhor creche para os filhos?
No início deste ano letivo, quantas oportunidades para uma vida melhor ficaram por dar? Se quer mesmo marcar uma vida melhor para o seu bebé invista cedo na sua educação: e não se esqueça que a melhor creche para os seus filhos é fazer com que haja creches para todos.
Morte às férias de verão
As escolas fecham demasiado tempo no verão e prejudicam as crianças, sobretudo as mais pequenas e as mais pobres. Não queremos ter esta conversa porque temos dificuldade em calçar os sapatos (ou melhor: os chinelos) dos outros.
Edições do Dia
Boas leituras!