A Boneca de Porcelana
O juiz observou as duas mulheres. Era evidente que havia mais nesta disputa do que uma simples boneca. "Posso perguntar como acabou a vossa amizade?"
No Tribunal de Família de Faro, o oficial de Justiça Carlos encontrou-se numa situação delicada: duas mulheres idosas disputavam uma boneca de porcelana que parecia ter mais valor sentimental do que monetário. Maria João Santos, de setenta e dois anos, e Isabel Costa, de setenta e cinco anos, tinham sido melhores amigas durante quarenta anos até uma disputa sobre a herança da também amiga comum, Fernanda Silva.
A boneca em questão estava cuidadosamente embrulhada numa caixa sobre a mesa do juiz Dr. Américo Tavares. Era uma boneca antiga, com vestido de renda azul e cabelo loiro cacheado, claramente bem cuidada ao longo dos anos.
"D. Maria João," começou o juiz, "pode explicar-me porque considera que esta boneca lhe pertence?"
"Porque eu a ofereci à Fernanda há vinte e cinco anos, quando ela ficou viúva. Era da minha filha, que morreu num acidente de carro. A Fernanda estava muito deprimida na altura, e eu pensei que cuidar da boneca a ajudaria a sentir-se menos sozinha."
"E D. Isabel, qual é a sua versão?"
"É verdade que a Maria João ofereceu a boneca à Fernanda. Mas nos últimos dez anos, desde que a Fernanda ficou doente, era eu quem cuidava dela todos os dias. E era eu quem limpava a boneca, quem a vestia com roupas novas, quem se certificava de que estava bem cuidada."
O juiz observou as duas mulheres. Era evidente que havia mais nesta disputa do que uma simples boneca.
"Posso perguntar como acabou a vossa amizade?"
As duas mulheres trocaram um olhar carregado de mágoa.
"A Isabel acusa-me de ter abandonado a Fernanda quando ela adoeceu," disse Maria João.
"E não abandonou?" perguntou Isabel, com amargura. "Quando a Fernanda começou com o Alzheimer, você desapareceu. Disse que não conseguia vê-la assim."
"Não conseguia mesmo!" explodiu Maria João. "A minha filha morreu jovem, a minha melhor amiga perdeu a memória... Eu não conseguia lidar com mais uma perda."
"Mas eu consegui. Fui eu quem cuidou dela durante cinco anos. Fui eu quem alimentei a boneca de histórias quando a Fernanda já não se lembrava porquê é que a tinha."
O juiz franziu o sobrolho. "Alimentou a boneca de histórias?"
Isabel sorriu tristemente. "A Fernanda, nos últimos anos, pensava que a boneca era a filha dela. Falava com ela, contava-lhe histórias da sua infância, penteava-lhe o cabelo. Eu seguia-lhe a corrente. Inventava histórias sobre o que a 'filha' tinha feito durante o dia."
"E isso ajudava-a?"
"Tranquilizava-a. Especialmente à noite, quando ficava agitada."
Maria João olhou para a boneca com expressão dolorosa. "Não sabia que a Fernanda pensava que era a filha dela."
"Havia muitas coisas que não sabia, porque não estava lá."
O juiz pediu uma pausa para pensar. Quando voltaram, tinha uma proposta inusual.
"Quero que me digam, cada uma, qual seria o melhor destino para esta boneca, considerando não os vossos sentimentos, mas o que a Fernanda e a filha da Maria João teriam querido."
Maria João foi a primeira a responder. "A minha filha era generosa. Adorava partilhar os brinquedos. Se soubesse que a boneca consolou a Fernanda, ficaria feliz."
"E a Fernanda, o que teria querido?"
Isabel pensou por um momento. "A Fernanda sempre disse que a boneca lhe dava esperança. Que representava a possibilidade de cuidar novamente de alguém, depois de perder o marido e nunca ter tido filhos."
"Então, sugiro algo diferente," disse o juiz. "A boneca vai para um lar de idosos onde possa continuar a dar conforto a pessoas que precisem dela. Mas vocês as duas vão visitá-la regularmente. Juntas."
As duas mulheres olharam-se, depois olharam para o juiz.
"Não percebo," disse Maria João.
"Vocês perderam duas pessoas importantes: a filha da Maria João e a Fernanda. Mas também se perderam uma à outra. Esta boneca pode ser a ponte para recuperarem a amizade que a dor vos fez abandonar."
"E se não conseguirmos?" perguntou Isabel.
"Então a boneca fica no lar, e pelo menos continuará a cumprir o propósito para o qual foi criada: dar conforto a quem precisa."
Duas semanas depois, Maria João e Isabel visitaram juntas o Lar Quinta das Flores. A boneca estava numa sala comum, sendo cuidada por D. Alice, uma residente de oitenta anos que também sofria de demência.
"Ela pensa que é a neta dela," explicou a enfermeira. "Fala com ela sobre a escola, sobre os amigos."
Maria João e Isabel observaram D. Alice pentear cuidadosamente o cabelo da boneca.
"A minha filha teria gostado de saber que o brinquedo dela ainda faz pessoas felizes," murmurou Maria João.
"E a Fernanda ficaria feliz por saber que não foi a única a encontrar conforto nela," acrescentou Isabel.
Saíram do lar juntas e foram tomar café numa pastelaria próxima. Foi o primeiro café que partilharam em dois anos.
"Sabes," disse Isabel, mexendo o açúcar, "também senti a tua falta. Não era só a Fernanda que estava doente. Eu também precisava de apoio."
"Eu sei. Peço desculpa. Quando perdi a minha filha, prometi a mim mesma que nunca mais me ia magoar tanto por alguém. Mas esqueci-me de que fugir da dor também significa fugir do amor."
Dois meses depois, o Dr. Tavares recebeu uma carta das duas mulheres. Tinham começado um grupo de voluntariado no lar, onde visitavam idosos solitários e traziam brinquedos antigos para estimular memórias. A boneca tinha-se tornado a mascote não oficial do grupo.
"Descobrimos," escreviam, "que algumas perdas doem menos quando são partilhadas, e que alguns tesouros multiplicam o seu valor quando são dados em vez de guardados."
A Boneca de Porcelana
O juiz observou as duas mulheres. Era evidente que havia mais nesta disputa do que uma simples boneca. "Posso perguntar como acabou a vossa amizade?"
O Desenho da Lara
Ricardo olhou para o desenho da filha. "Lara, não te sentes confusa por teres famílias diferentes?" "Não, pai. É como ter duas equipas de futebol favoritas. Posso gostar das duas."
O Álbum de Fotografias
José olhava para o álbum com expressão nostálgica. "A Patrícia perguntou-me no outro dia se não me arrependo de ter estragado a família. E eu não soube o que responder."
O Espelho Partido
"Representa tudo o que não sei como dividir. As memórias, os rituais diários, as pequenas tradições. Posso dividir móveis e brinquedos, mas como divido os momentos em que penteava o cabelo da Ema todos os dias enquanto ela se olhava no espelho?"
O Cachecol Vermelho
"O cachecol é uma herança de família," contrapôs a advogada de Beatriz. "Quando o casamento terminou, os objetos sentimentais da família Sousa deveriam ter regressado à família."
Edições do Dia
Boas leituras!