António Joaquim Rodrigues Ribeiro nasceu em Amares, Braga, a 3 de dezembro de 1944. Morreria em 1984, meses antes de completar 40 anos. Apesar da curta discografia (dois discos e dois singles), o cantor tornou-se um ícone nacional que marcou várias gerações apesar dos parcos conhecimentos musicais. Quando se assinalam 80 anos desde o nascimento de Variações, a SÁBADO falou com Vítor Rua, um dos músicos que o ajudou a construir o seu primeiro disco e que vai participar num colóquio sobre o impacto do cantor de O Corpo é Que Paga na sociedade portuguesa.
A história é sobejamente conhecida: o jovem fascinado pelo folclore e procissões do Minho queria conhecer mais mundo do que aquele que lhe dava a sua pequena aldeia. Morou em Londres e Amesterdão durante a década de 70 e ali conheceu uma cultura onde a homossexualidade não era tão tabu, havia discotecas onde ser diferente era bem-vindo e música que tardaria a chegar cá. Voltado a Portugal, António Ribeiro arranja trabalho como barbeiro no Centro Comercial Imaviz (um dos primeiros do seu género em Portugal), em Lisboa. Ali, o seu estilo excêntrico chamava clientes, inclusive o apresentador Júlio Isidro que o levou ao programa O Passeio dos Alegres, na RTP, revelando-o assim ao país inteiro. Para trás ficavam anos em que tinha sido deixado nas gavetas da Valentim de Carvalho. E é precisamente com Júlio Isidro (no programa apresentou o single inspirado pelas novas correntes do punk Toma o Comprimido) que Variações começa a ter algum destaque na cena musical. Mas esse foi apenas um passo num caminho em que a sorte desempenhou um papel muito importante.
Vítor Rua, músico e etnomusicólogo que fez parte dos Telectu e dos GNR, foi um dos músicos e produtores do primeiro disco de António Variações (Anjo da Guarda, editado em 1983) e tem uma teoria para o sucesso intergeracional de António Variações: "Teve sorte várias vezes. E nestes casos a sorte é muito importante". E em que consiste a sorte de António Variações? No entender de Rua, nas pessoas que decidiram apostar nele. "Para falarmos do António Variações temos de pensar em duas pessoas que são o Francisco Vasconcelos e o David Ferreira", explicita o músico responsável pelos arranjos musicais em Anjo da Guarda, o disco de estreia de Variações.
"Quando o Variações disse que queria fazer música pop e rock na Valentim de Carvalho decidiram passá-lo para a alçada do Francisco Vasconcelos. E ele ouviu as maquetes que o Variações trazia e disse que não ia produzir aquilo. Que lhe ia arranjar bons músicos que o iam ajudar", reconta Vítor Rua. O produtor da Valentim de Carvalho chamou os músicos dos Salada de Fruta que ajudaram a gravar os primeiros temas. Mas para gravar o disco de estreia foram chamados outros músicos. David Ferreira e Francisco Vasconcelos decidiram estender o convite aos GNR (de Vítor Rua) que tinham lançado o disco de estreia, Independança, um ano antes. "Eu não quero dizer que aceitei só por causa do dinheiro, mas a verdade é que não tínhamos nada em comum. Eu vinha do rock sinfónico e andava a ouvir a new wave dos Talking Heads e dos Devo. Ele gostava era dos Abba e da Amália. Musicalmente estávamos em pontos opostos", recorda o multi instrumentista.
A construção de um mito
A verdade é que apesar da ideia do astro musical genial que se consolidou nos últimos 40 anos, os músicos que tocaram com Variações lembram algo diferente. Num documentário sobre Variações e sobre a gravação do seu primeiro disco pode-se ouvir Tóli César Machado (baterista dos GNR e do primeiro disco de Variações) a comentar que o músico tinha muita dificuldade em cantar afinado. Já Pedro Vasconcelos, o produtor, diz que o cantor não tinha qualquer noção de ritmo. Pedro Ayres de Magalhães, dos Heróis do Mar, a banda que acompanhou Variações no segundo disco, Dar & Receber, disse em entrevista ao Observador que "ele não sabia música nem tempo, [era] impossível".
Questionamos Vítor Rua que atesta estas declarações. "Ele fazia uns 10 takes em estúdio e depois nós cortávamos partes. Se ouvir a canção ‘O Corpo é Que Paga’ ouve-se um arranque em falso. As pessoas até podem achar que foi de propósito, mas aquilo foi o António a fazer um arranque em falso e nós estávamos no estúdio a dar-lhe sinal de que tinha entrado fora de tempo e quando devia começar. E depois na fase final decidimos deixar aquele erro porque nos soou bem."
Rua recorda Cornelius Cardew, o compositor experimental que serviu de assistente a Karlheinz Stockhausen que juntou "não-músicos" com músicos profissionais para as suas criações. "Ele juntava pessoas sem qualquer tipo de formação musical ou conhecimentos musicais com músicos ótimos e criava a partir daquilo. Foi isso que aconteceu com o Variações que era um não-músico. Tinha letras com as quais os jovens se identificavam e uma imagem inovadora para Portugal."
O músico dos GNR recorda ainda dois momentos na produção do disco de estreia de Variações que apontam para a falta de musicalidade do bracarense. "Sabe aquela entrada de guitarra no ‘O Corpo é que Paga’? Ele assobiou-me aquilo e pediu que fizesse a parte da guitarra com aquilo. Então eu gravei o "tararara-tarararara" e acrescentei uma distorção para aquilo ficar mais giro. Só muitos anos mais tarde, quase 40, é que ouvi aquilo num filme que é o Mamma Mia sobre as canções dos Abba. Ele estava a trautear-me os Abba e eu fiz aquilo", conta o músico.
O outro episódio já foi contado por Rua várias vezes. Variações pediu-lhe um instrumental para a canção "Visões-ficções (Nostradamus)" em que se "sentisse a terra a tremer". "Ora, ele não tinha ideia nenhuma para aquilo. Pediu-me só que fizesse a canção porque não tinha ideias. É que ele era um não músico. Uma pessoa sem noção de ritmo e de afinação e que teve sorte de trabalhar com ótimos músicos, desde os Salada de Fruta, passando pelos GNR e pelo Pedro Ayres de Magalhães e que tiveram imenso trabalho no estúdio para pôr aquilo a funcionar."
Mas como é que alguém sem grande talento musical consegue marcar desta forma a música que ainda hoje se faz em Portugal? Em 2004 Camané, David Fonseca (Silence4) e Manuela Azevedo (Clã) gravaram canções do músico no projeto Humanos. Em 2015 é apresentado BragaNY, coletivo da autoria de Samuel Úria com o Tiago Cavaco, João Eleutério e David Pires inspirado por Variações. E há dezenas de versões gravadas de canções de Variações 40 anos depois da sua morte. "As pessoas não viram o Variações ao vivo. E não conhecem as gravações dele. Conhecem os dois discos de estúdio que têm a melhor produção que havia naquela altura em Portugal e que implicaram muito trabalho. E como é isso que conhecem, soa-lhes bem porque aquilo de facto soa bem. O que não conhecem é o trabalho de estúdio que foi preciso para pôr aquilo a soar assim", descreve Rua.
Mas não é também despiciente a personagem de Variações. "Ele é um fenómeno sociológico-musical, claro. E acertou nos timings. Antes já tinha havido malta a gravar coisas tradicionais com uma nova roupagem, como os Banda do Casacao, mas sem terem o mesmo sucesso. Ele teve um single de sucesso e as pessoas gostavam dele e das ideias dele e ajudaram-no a concretizar essas ideias."
A inovação visual, a forma de estar na sociedade e as canções icónicas fizeram com que fosse impossível falar de Portugal dos anos 80 sem pensar em Variações. Mas os últimos anos - a biografia de Manuela Gonzaga, o filme de João Maia e outros trabalhos publicados - foram essenciais para entender o percurso deste "astro" que precisou de muito trabalho para ficar para sempre na história.