A cantora Selma Uamusse e a actriz Zia Soares (ao centro) revivem em palco as histórias verídicas de seis congolesas, cujos retratos (a preto e branco) estarão espalhados nas ruas, entre o Chiado e o Bairro Alto, enquanto Ruínas estiver em cena

Lynn Nottage planeava fazer uma peça sobre o Iraque, mas um título no jornal, sobre uma guerra em África onde as mulheres eram as principais vítimas, desviou-lhe a atenção. Em 2004 viajou para a República Democrática do Congo e lá encontrou a inspiração de Ruínas, a sua peça estreada em 2008 e premiada com um Pulitzer em 2009: histórias de mulheres violadas e torturadas, tanto por representantes do governo como pelos rebeldes que se lhe opõem, num conflito que dura há mais de cinco décadas.

Entrevistou-as, o marido (Tony Gerber, realizador) fotografou-as logo a seguir e a autora rapidamente percebeu que, naquele contexto (como noutros contextos de guerra), é a luta pela sobrevivência que dita as regras e, portanto, "mais do que vítimas, elas eram sobreviventes", pessoas fortes, como o são as personagens de Ruínas, o musical em estreia no Teatro São Luiz, em Lisboa, na quarta-feira, 6 de Janeiro.

A acção decorre num bordel de uma pequena cidade mineira, que é no Congo, mas podia ser em qualquer país africano - até lusófono, como refere o encenador António Pires, angolano a residir em Portugal, que mal leu o texto sentiu que "tinha a missão de o pôr em cena" e se rodeou de actores e cantores, como ele negros (excepto um, branco, a fazer de árabe) e igualmente com histórias pessoais e familiares de fuga à guerra.

É o caso de Zia Soares, cujo pai, timorense, foi preso e deportado para Angola, onde conheceu a mãe, com quem escapou para Portugal. "Foi por isso que cresci aqui", contou ao GPS a actriz de 43 anos, que interpreta Mama Nadi, a dona do bordel.

A personagem, protagonista da peça, surge como uma mulher fria, que lucra com a miséria alheia. Porém, o desenrolar da intriga vai mostrar que ela própria tem um passado difícil e que, afinal, ela é uma espécie de salvadora daquelas mulheres que, depois de violadas e torturadas, regressam às suas casas e acabam repudiadas pelos próprios pais, irmãos e maridos. "Para estas mulheres arruinadas, a prostituição é um mal menor. Pelo menos, têm tecto e comida", realça Zia.

Entre elas, apenas uma não se prostitui, porque Mama Nadi tem pena dela. É Sophie, a cantora - que foi violada e esventrada por uma baioneta. Não é uma privilegiada, embora as outras a invejem, porque - como diz Selma Uamusse, a quem coube o papel - "ela traz no corpo as marcas do horror", mas "tem vantagem, porque, ao cantar, liberta-se um pouco da dor". Membro dos Wraygunn e com carreira a solo, Selma, moçambicana de 34 anos feitos na véspera de Natal, acha crucial esse detalhe: "Também eu, quando canto, entro numa bolha de felicidade."

Além do musical (que nesta versão portuguesa tem letras de Kalaf e música de Filipe Raposo), o projecto Ruínas inclui um debate sobre refugiados de guerra (dia 7, 18h30, no Teatro do Bairro, que o co-produz) e uma exposição fotográfica nas ruas do Chiado e do Bairro Alto, com os retratos das seis mulheres cujas experiências pessoais deram origem ao texto.

Ruínas
Teatro Mun. São Luiz, Lisboa
De 6 a 17/1 || 3.ª a sáb., 21h; dom., 17h30
€12 a €15

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