O escritorAfonso Reis Cabral, que venceu esta terça-feira o Prémio Saramago pelo seu romance "Pão de Açúcar", disse que escrevê-lo o obrigou "a mergulhar nessa anatomia do mal". À margem da cerimónia na Fundação José Saramago, em Lisboa, Afonso Reis Cabral disse que escrever este livro "foi particularmente duro e difícil", tendo-se dedicado a tempo inteiro a essa missão, razão pela qual abandonou o seu cargo de editor.
"Depois punha a mão na consciência e pensava: 'Não importa que seja particularmente duro para mim, importante é que isto fique bem escrito'", contou. O escritor afirmou-se "muito contente por ter recebido um prémio que foi pensado por José Saramago" e por ter lido todos os romances vencedores das edições anteriores. "É uma alegria agora o meu livro estar entre os livros dos outros", destacou.
A partir do brutal assassinato de Gisberta Salce Júnior, transexual brasileira, Afonso Reis Cabral (n. 1990) escreveu Pão de Açúcar, romance não ficcional. Quem leu A Sangue Frio, de Truman Capote, identifica o género. Factos: em Fevereiro de 2006, Gisberta, 45 anos, foi encontrada morta no poço alagado de um prédio inacabado do Porto, conhecido como Pão de Açúcar.
No discurso de agradecimento, Reis Cabral disse mesmo sentir "uma alegria de criança", por ser distinguido com o prémio. Sublinhando que o seu compromisso é com a literatura, o autor disse que tem já estruturado um novo romance, no qual irá trabalhar "em breve, durante cerca de um ano", sem adiantar pormenores. A morte de Amália Rodrigues, há 20 anos, levou Reis Cabral a escrever, como disse.
Começou pela poesia, mas é a ficção o que lhe dá mais prazer, disse. "Conhecia Amália como fadista, mas nunca a tinha ouvido realmente, e ouvir aqueles grandes poetas pela voz única e bela da Amália, despertou-me para a poesia", disse. O autor dedicou o prémio a uma amiga sua, Ariana Mascarenhas, que foi a primeira pessoa a quem mostrou as primeiras páginas deste romance.
Aos jornalistas explicou que, estando ela então hospitalizada, foi "de uma grande generosidade", ter dado parte do seu já pouco tempo à leitura da sua obra. "Pão de Açúcar" foi editado no ano passado, e aborda um caso verídico que aconteceu no Porto, o assassinato da transexual Gisberta, em 2006, depois de sucessivos atos de violência e na sequência de um ataque, perpetrado por jovens entre os 12 e os 16 anos, à guarda da instituição católica Oficina de São José.
Na opinião de Ana Paula Tavares, um dos membros do júri, o romance de Afonso Reis Cabral, "lido com o espesso e confuso mundo da memória [e narrado na primeira pessoa] retira do esquecimento acontecimentos que os jornais e os relatórios da Polícia tinham tratado de forma redutora e parcial, com silêncios e omissões que o autor se propõe aqui revelar".
"Romance compassivo, mas nunca sentimental, 'Pão de Açúcar' é de uma parcimónia exemplar no que respeita à linguagem pela imagística, sobretudo face à dramaticidade comovente dos envolvimentos humanos da sua estória", salientou outro jurado, o catedrático Manuel Frias Martins, sublinhando tratar-se de "um grande romance de um jovem autor de quem a literatura portuguesa se deve desde já orgulhar".