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Profissionais do cinema alertam para "silenciamento de denúncias" de assédio

Em resposta a um texto publicado no passado sábado, cerca de 300 profissionais da cultura alertam para o risco de se "desconfiar 'a priori' das vítimas".

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Edição de 5 a 11 de agosto
Lusa 16 de maio de 2025 às 12:14
Pedro Catarino

Cerca de 300 profissionais da Cultura, sobretudo da área do Cinema, defendem a criação de canais de denúncia neutros para vítimas de assédio "e outras formas de violência de género", que consideram "um problema estrutural e estruturante" na sociedade.

O texto publicado esta sexta-feira no site do jornal Público surge em resposta a uma "Carta aberta para debate no setor do cinema", divulgada no sábado e assinada por cerca de uma centena de profissionais do setor do Cinema, que criticava a decisão do festival IndieLisboa de retirar da programação deste ano um filme e um projeto do realizador e produtor Ico Costa, após denúncias de violência doméstica.

Entre os subscritores do texto publicado esta sexta-feira estão realizadores como João Salaviza, José Filipe Costa, Renée Nader Messora, Teresa Villaverde, Manuel Pureza, Filipa César, Raquel Freire, Vicente Alves do Ó, Catarina Mourão, Rita Nunes e Laura Carreira, atrizes como Joana Ribeiro, Sara Carinhas e Rita Blanco, a programadora Ana Isabel Strindberg, atores como Miguel Nunes e Matamba Joaquim, as Fado Bicha, o antropólogo Miguel Vale de Almeida e o artista visual Daniel Blaufuks.

Os assinantes começam por explicar que o texto "não propõe encerrar respostas quanto à decisão do festival ou à culpabilidade do acusado, salvaguardando o princípio da presunção de inocência".

E, nesse sentido, estão alinhados "plenamente com o apelo da carta aberta [de sábado] à criação de, por um lado, de 'ferramentas próprias, justas e legais que permitam que as vítimas de assédio e agressão encontrem um espaço seguro para as suas denúncias e justa proteção' e, por outro, com a constatação da necessidade de 'implicação do Instituto de Cinema e Audiovisual, bem como da tutela, na criação de canais de denúncia neutros'".

No entanto, defendem que tal apelo "não pode estar baseado num argumentário que desconfia a priori das vítimas", considerando que a carta aberta "potencia, por um lado, o silenciamento de futuras denúncias e, por outro, contribui para a criação de um contexto de leitura de outros casos de abuso a partir das especificidades desta acusação concreta, sobre estes arguindo genérica e abstratamente".

Em abril foi divulgada, através da rede social Instagram, uma denúncia assinada por uma alegada vítima de violência durante um relacionamento com o realizador Ico Costa, há cerca de quatro anos.

Na denúncia pública, são feitas referências a agressões verbais, físicas e psicológicas, "estratégias de intimidação, de chantagem emocional e de vitimização" por parte de Ico Costa, descrito como um "abusador em série" e com um "historial de agressões machistas".

A mulher dizia ter conhecimento de "pelo menos [outras] seis vítimas" e que as agressões aconteceram "pelo menos ao longo de dez anos".

No seu caso, diz ainda que tentou apresentar, mas não chegou a concretizar, uma queixa-crime contra o realizador: "A própria polícia só me levantou dificuldades, argumentando que não o ia conseguir levar avante por já não apresentar sinais visíveis de agressão física".

Em declarações à Lusa, na altura, o realizador descredibilizou os relatos, dizendo que a denúncia era falsa e que desconhecia quem eram as alegadas vítimas.

Num 'email' enviado à agência Lusa, a denunciante disse que tem receio de se expor além do que já disse na carta pública.

"Dizer-se, como tenho lido, que estou a usar um pseudónimo faz parte de uma estratégia instituída no pensamento mais profundo da cultura portuguesa, que é a desacreditação da vítima, o apagar do rosto e da impressão digital de uma pessoa que não se consegue fazer ver por mais exposta que se coloque. Se falamos por email, é porque não existimos e somos um pseudónimo. Se damos a cara é porque temos cara de quem gosta de apanhar", afirmou.

Na sequência da denúncia, o IndieLisboa decidiu retirar da programação o filme Balane 3, de Ico Costa, e um outro projeto que o realizador produz, ainda por concluir.

"A situação exige integridade e responsabilidade social, princípios que regem o nosso código de conduta. Somos profundamente sensíveis a denúncias de violência e temos consciência de que o contexto social e legal da violência de género é, muitas vezes, revitimizante na forma como trata quem denuncia", escreveu a direção do IndieLisboa, em comunicado.

Os subscritores da carta aberta divulgada no sábado questionam "a legitimidade de um festival de cinema para retirar da sua programação o trabalho de todas essas pessoas, lançando sobre ele próprio suspeitas que em nada lhes dizem respeito".

Entre os profissionais do cinema que assinaram a carta aberta contam-se os realizadores Miguel Gomes, João Pedro Rodrigues, Rodrigo Areias, Sandro Aguilar, Gabriel Abrantes, Sérgio Treffaut, Salomé Lamas, Susana Nobre, Margarida Gil, Cláudia Varejão, Catarina Vasconcelos e Tiago Guedes, e atrizes como Maria João Pinho, Isabel Abreu, Ana Sofia Martins, Sandra Faleiro, Rita Cabaço e Leonor Silveira.

Em resposta, os subscritores do texto divulgado esta sexta-feira salientam que esse "trabalho coletivo" é, "com frequência, altamente verticalizado, piramidal e recompensado de maneira desigual tanto em termos materiais, quanto simbólicos".

"Como tal, o argumento de que porque um filme é o resultado de um trabalho coletivo não deve ser retirado de festivais devido à alegada conduta do seu realizador oculta a base material do regime de autoria em que atuamos enquanto sociedade", sustentam.

Além disso, defendem que o problema "estrutural" do "assédio, e outras violências de género", "não pode, nem tão-pouco deve ser aferido a partir de um caso concreto, que a carta aberta toma como exemplar, encontrando-se inerente a esta lógica o risco de descredibilização das vítimas de violência na sua generalidade".

É por este e outros fatores apontados no texto, que os subscritores consideram que a "carta aberta para debate no setor do cinema" "não contribui para abrir o debate, mas para o fechar, obstaculizando futuras denúncias e intimidando potenciais vítimas".

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