Entrevista
Entrevista

Elisabete da Cunha: “O astrónomo é sempre a pessoa mais interessante de uma festa”

Paulo Vila 13 de novembro de 2022

Trabalhou com o telescópio ALMA e está entre o restrito número de pessoas que acederam ao revolucionário James Webb. E também criou um programa informático para analisar as galáxias.

A paixão pela Astronomia levou-a da vila de Barroselas, Viana do Castelo, à Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, onde se licenciou. Seguiu-se um doutoramento em Astrofísica pela Universidade de Paris VI – cidade onde nasceu. Rumou depois a Creta, na Grécia, e dali partiu para a Alemanha. Na Austrália, onde chegou em 2014, fixou-se em Melbourne, Camberra e desde 2019 que está em Perth. É lá que Elisabete da Cunha trabalha como investigadora sénior no Centro Internacional de Pesquisa em Radioastronomia da Universidade da Austrália Ocidental. Foi uma das primeiras astrónomas portuguesas a aceder ao ALMA (Atacama Large Millimeter/submillimeter Array) e reconhece ser uma "privilegiada" ao lidar com os maiores telescópios do mundo.


De que forma uma maior compreensão do universo pode favorecer a humanidade?
Há várias formas de responder a essa pergunta porque são múltiplas as vertentes em que essa compreensão é útil para a humanidade. Por exemplo, na minha ideia romântica de ver as coisas, a humanidade sempre quis perceber de onde vem e qual é o seu lugar no universo. Temos, desde a Pré-História, homens e mulheres a olhar para o céu e a questionarem-se acerca do que veem. Mas, por outro lado, há também benefícios concretos além da mera compreensão e estudo do universo. Por exemplo, há imensas tecnologias que depois são postas à disposição do cidadão comum. As câmaras dos telemóveis resultam de uma técnica desenvolvida com o intuito de fotografar digitalmente o céu profundo. Tecnologias de Wi-Fi, tudo isso tem a ver com aplicações do espaço e da astronomia.

A divulgação científica do estudo dos planetas teria sido a mesma sem Carl Sagan e o seu Cosmos?
Acho que não. Essa é uma boa pergunta porque, às vezes, até nos esquecemos dele. Eu própria talvez não fizesse o que faço hoje se não fosse Carl Sagan. Não foi apenas ele, mas o Cosmos foi, sem dúvida, uma grande influência para mim. Ele foi um comunicador espetacular. E, por muito que se queira, não há substituto. O seu humanismo e humildade foram marcantes. Ele escreveu coisas que, mesmo quase 30 anos após a morte, ainda se aplicam.

A Astronomia continua a ser vista com uma certa indiferença ou a literacia científica já vai fazendo o seu caminho?
Não acho que haja indiferença. Costumo, até, dizer, quando estou a tentar convencer estudantes a estudarem Astronomia, que o astrónomo é sempre a pessoa mais interessante de uma festa [risos]. Quando estou entre pessoas que não são astrónomos, há sempre muitas que querem falar comigo, perguntar coisas, porque têm curiosidade sobre o assunto. Se têm muito conhecimento? Talvez não, mas acho que comparativamente com outras ciências até estamos bem. Por exemplo, em Portugal, na RTP, o Miguel Gonçalves tem uma rubrica aos domingos [A Última Fronteira] e não são todas as ciências que gozam desse destaque.

Estuda galáxias distantes. Com que finalidade?
Eu quero perceber como é que elas se formaram. Ou seja, nós sabemos que moramos numa galáxia, a Via Láctea. Mas quando olhamos para o nosso universo próximo, vemos que existem galáxias com formas e propriedades diferentes. Temos isso e temos esta ideia da cosmologia do Big Bang em que sabemos que o universo começou num ponto que explodiu, o chamado Big Bang, foi-se expandindo e tem estado a expandir-se e a arrefecer lentamente há cerca de 13,5 mil milhões de anos. E sabemos também que era muito uniforme: era só gás, hidrogénio, hélio, matéria negra e pouco mais. Depois, esse gás começou a colapsar por efeito gravitacional e a formar as primeiras estrelas e galáxias. Mas entre estes dois acontecimentos há 13,5 mil milhões de anos relativamente aos quais não conhecemos os detalhes todos.

Estas galáxias distantes são das que formam mais rapidamente estrelas no universo.
Sim, especialmente aquelas que eu gosto de observar. Em geral, no passado, as galáxias estavam a formar mais estrelas. Agora, esta tendência tem vindo a diminuir. E cada vez vão diminuir mais até um ponto em que o universo já não vai ter hidrogénio para originar mais estrelas.

Em que consiste a MAGPHYS, a ferramenta que desenvolveu?
Foi o meu projeto de doutoramento há já alguns anos e não é nada mais do que um programa informático. E o que é que faz? Dando-lhe as observações das galáxias – e elas não emitem só num comprimento de onda, emitem no espetro todo, do ultravioleta ao ótico, que vemos com os nosso olhos, ao infravermelho e ao rádio –, o MAGPHYS consegue traduzir a luz que está nesses comprimentos de onda todos e dá-nos os parâmetros físicos da galáxia. Fazia falta uma ferramenta assim e não existia. Corri um risco muito grande, mas consegui. Entretanto, já apareceram outras do género. Acho, aliás, que é a mais utilizada no mundo para este propósito.

É uma fascinada pelas capacidades do observatório ALMA. O que é que ainda não saberíamos sobre o universo se este telescópio não existisse?
Não posso falar de tudo o que se descobriu, mas, na minha área, uma das coisas que com certeza não saberíamos é que, no universo muito distante, nas primeiras galáxias, já se vê imensa poeira interestelar. E nós não estávamos à espera disso. Antes do ALMA, não conseguíamos observar a poeira interestelar e assumíamos que, nas galáxias muito distantes, não tinha havido tempo para se formarem os elementos químicos necessários para originar poeiras e, depois, as grandes poeiras em si mesmas. Ora, nós descobrimos que existe já imensa poeira interestelar nas galáxias jovens, o que constitui um desafio para os nossos modelos.

Como avalia a experiência de trabalhar no ALMA?
Tem sido ótima. Antes de trabalhar com o ALMA, devo confessar que não era grande astrónoma observacional. Mas quando fui para a Alemanha, em 2011, estive a trabalhar com um mentor que me ensinou tudo sobre o ALMA e que me deu a oportunidade de ter acesso ao telescópio. E, a partir daí, nunca mais deixei, porque é um instrumento fantástico, apesar de ser um processo muito competitivo porque o ciclo de propostas é anual e, normalmente, há entre 1.500 e 1.700 propostas por ano e só uma pequena parte é aceite.

Com o telescópio espacial James Webb conseguimos ver até 13 mil milhões de anos, muito perto do Big Bang. As primeiras imagens desse espaço profundo estão, de facto, a ser revolucionárias?
Estão. Aquela primeira imagem que até foi exibida pelo Joe Biden, necessitou de apenas algumas horas com o James Webb. Uma imagem equivalente com o telescópio Hubble, teria demorado muitos dias e, até, semanas. A capacidade do James Webb capturar fotões com aquele espelho enorme faz com que seja muito mais rápido conseguirmos imagens profundas. Nunca fomos tão longe com o Hubble.

O que é que ainda se pode esperar do James Webb?
Tanta coisa. Nós só agora estamos a começar. Ainda não foi tirada a imagem mais profunda que se vai conseguir. Por outro lado, é preciso ter em conta que a calibração do telescópio ainda está a ser feita.

O melhor ainda está para vir, então?
Sim, sem dúvida. E não é só na minha área. A capacidade do James Webb de fazer espectros das atmosferas de exoplanetas, detetar dióxido de carbono, água nas atmosferas de planetas que estão à volta de outras estrelas, isso nunca foi conseguido antes. 

O facto de ter havido uma astrónoma portuguesa e técnicos do ISQ [Centro de Interface e Tecnologia] envolvidos na preparação e lançamento do James Webb é demonstrativo das capacidades dos cientistas portugueses?
Absolutamente. Acho que os cientistas portugueses não devem nada aos colegas, sejam de que país forem. As pessoas da minha geração – ou mais jovens, até –, graças à formação que obtêm nas universidades portuguesas, destacam-se por esse mundo fora. O problema é reter no País essas pessoas e dar-lhes o valor que têm.

Em Portugal há condições para se ser astrónomo profissional?
Haver há porque existem alguns, mas não é nada fácil. Por exemplo, eu cheguei a pensar regressar a Portugal por ocasião da pandemia, numa altura em que estávamos aqui com as fronteiras todas fechadas. O problema é que em Portugal, no que concerne a obter posições sénior numa universidade, o processo não é nada transparente. A este nível é muito diferente do que acontece noutros países.

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