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Paula Cordeiro Especialista em comunicação
17.11.2025

A insustentabilidade da discussão sem ação

Como Lula fez referência no seu discurso, fala-se muito, decide-se pouco e executa-se quase nada.

Ano após ano, a COP mantém o mesmo ritual: discursos ambiciosos, metas reforçadas, anúncios solenes de compromissos futuros. Os compromissos do Acordo de Paris (que tem já 10 anos) são atualizados, renegociados e celebrados como avanços estruturais. Contudo, na implementação concreta, o vazio torna-se evidente. Como Lula fez referência no seu discurso, fala-se muito, decide-se pouco e executa-se quase nada. Porquê? Porque os países prometem cumprir na medida das suas possibilidades. É um compromisso que depende da boa vontade dos Estados, sem fiscalização ou punição e, neste contexto, o mercado de créditos de carbono tornou-se uma estratégia, pois em vez de cortar emissões internamente, muitos países preferem comprá-las a terceiros, transferindo responsabilidades sem alterar comportamentos. 

Este cenário tem recebido muitas críticas e, por exemplo, Bill Gates, apesar da sua posição paradoxal, porque investe em tecnologias limpas mas lidera uma empresa com uma enorme pegada ambiental, tem sido um dos que defendem que o tempo das intenções já acabou. No seu apelo recente, lembra que não basta definir metas a dez ou vinte anos; é preciso agir agora, com medidas concretas, mensuráveis e imediatas. Há, na sua posição, a mesma contradição que atravessa o sector tecnológico: financia-se inovação para mitigar danos que, muitas vezes, se ajudam a criar. Mas, apesar disso, o alerta tem peso porque expõe o essencial: sem ação tangível, a agenda climática continua refém da própria inércia.

Portugal oferece um caso emblemático desta dissonância entre ambição discursiva e prática política. Enquanto participa nas COPs defendendo metas verdes e modelos sustentáveis, prepara simultaneamente a instalação de novos data centers (infraestruturas que consomem muita energia e, sobretudo, água), num país onde a escassez hídrica é cada vez mais estrutural, e que surge nos relatórios europeus como um dos territórios mais vulneráveis à seca. Esta opção é, no mínimo, paradoxal.

A narrativa dominante justifica estes investimentos como sinal de modernidade, progresso tecnológico e atração de capital. O turismo já era, o investimento estrangeiro parece diminuir. Portugal quer posicionar-se como hub digital europeu, um país competitivo e integrado na economia global da inovação. E a gestão dos recursos naturais e os limites ecológicos? E os problemas estruturais e sociais sem solução? A crise na habitação agrava-se, com rendas incomportáveis e falta de oferta acessível. O sistema de saúde público enfrenta rupturas sucessivas, incapaz de responder à pressão demográfica e à escassez de profissionais. A estas falhas soma-se a vulnerabilidade climática global, com reflexo também em Portugal. Das tempestades aos incêndios incontroláveis, juntamente com as flutuações constantes de temperatura e precipitação. Estaremos a sacrificar o essencial pela ideia de que o brilho do progresso tecnológico nos dá? Se um país não consegue alinhar o seu desenvolvimento com a proteção dos seus próprios recursos, de que forma poderá contribuir de forma credível para a acção climática global?

Se queremos que a ação climática seja real, é preciso garantir que as decisões internas não comprometem o que afirmamos querer proteger. Metas globais são importantes, mas a sua eficácia depende de políticas nacionais que coloquem as pessoas e os recursos naturais no centro da equação. Mas isso concorre com a ganância que resulta dos negócios altamente tecnológicos. Avançamos por um lado, retrocedemos, por outro, como evitar confundir investimento com progresso e colocar, como afirma Bill Gates, a sobrevivência à frente dos números? Talvez seja tempo de passar da discussão, à acção.

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