Sobre o discurso antiburocrático, outra vez
O discurso do “combate à burocracia” pode ser perigoso se for entendido de forma acrítica, realista e inculta, ou seja, se dispensar os dados e evidências e assentar supostas verdades e credibilidades em mitos e estereótipos.
Já várias vezes escrevi – por exemplo, aqui e aqui – sobre a importância da (boa) burocracia, a danosidade da má burocracia e os perigos da simplificação/racionalização/desburocratização excessiva ou sem critério, sobretudo quando politicamente subjugada ao discurso inflamado do “combate à burocracia”.
Antes de mais, para os mais leigos e julgadores precipitados nesta matéria, quero desde já dizer que sou favorável à desburocratização e abomino a má burocracia ou burocracia não garantística ou, também designada, de burocracia “privada”, ou seja, realizada de forma ilegal ou ilícita por quem aplica a lei, no seu próprio interesse, portanto, mais conhecidos na literatura administrativista por “street-level bureaucrats”.
Feita a declaração de interesses e convicções, há que atalhar no que realmente importa para que nenhuma reforma da desburocratização eroda o estado de direito e de direitos, a democracia e as liberdades, os quais, todos eles, estão por vezes na justificação do sobredito combate. Nem por aceso, foi publicado no passado dia 15 de setembro o livro “Blaming Bureaucracy: Reckoning with a Problematic Political Activity” (Oxford University Press, 2025), da autoria de Markus Hinterleitner, professor suíço da Escola de Alta Administração Pública da Universidade de Lausanne.
É certo que o sentido de burocracia utilizado no livro, pelo autor, é mais amplo: burocracia não se reduz simplesmente à papelada e ao chamado “red tape”, mas sim designa o conjunto de instituições, processos, estruturas e profissionais que constituem o braço executivo do Estado moderno.
Mas não nos iludamos, as associações simbólicas, narrativas e discursivas entre o sentido de amplas as noções – estrita e ampla - são diretas e indiretas, explícitas e sub-reptícias.
Hinterleitner enfatiza que a burocracia está “intrinsecamente ligada aos desdobramentos e resultados das ações governamentais”, englobando desde regras, rotinas e procedimentos administrativos e as pessoas que são responsáveis por colocar em prática as decisões das autoridades públicas, ou seja, os funcionários públicos.
O livro analisa a prática recorrente de culpar a burocracia (“bureaucracy blaming”) como atividade política. Em termos simples: decisores e comentadores recorrem a um rótulo fácil para explicar falhas de política, atrasos, erros e impopularidade, mesmo quando as causas são estruturais (desenho das políticas, debilidades legislativas, constrangimentos legais, défice de gestão, desinvestimento em recursos, interdependências públicas e privadas).
A culpabilização é frequente, difusa e, muitas vezes, abstrata, recorrendo a estereótipos amplos sobre “a” burocracia. Porém, sustenta o autor, normalizar este discurso promove uma burocracia fraca e incompetente e deteriora, pois, a capacidade do Estado, designadamente no desenho e implementação de respostas e resolução de problemas mais complexos e de maior impacto.
A “culpa da burocracia” não distingue entre os diferentes elementos internos desse sistema e muitas vezes serve para ocultar problemas políticos e culturais ou de liderança.
A conotação negativa de burocracia, como sinónimo de ineficiência, rigidez e irresponsabilidade, usada para fins políticos (desviar culpas, simplificar explicações ou mobilizar apoio).
Além disso, no terreno, conduz a receios e resistências à mudança por parte dos implementadores, culminando em consequências não intencionadas pelos reformadores. Entre elas, cortes no investimento público, falhas no exercício e controlo das funções do Estado (como, digo eu, se viu no recente acidente trágico do ascensor da Glória) e a desresponsabilização administrativa e política.
Com efeito, Hinterleitner sustenta que a manipulação deliberada do discurso antiburocrático por atores políticos pode enfraquecer estruturas institucionais, para fins próprios ou particulares, e deste modo servir de “cavalo de Troia” para justificar privatizações, cortes de pessoal e desmantelamento de políticas públicas essenciais, fragilizando ainda mais o interesse público e a confiança social no Estado.
Por outras palavras, por detrás do apelo reformista antiburocrático pode esconder-se, e segundo autor é frequente, um ato político acusatório de culpabilização, um mecanismo de transferência de responsabilidades, que fragiliza o controlo e a confiança institucional e desvia o foco tanto das causas reais dos problemas públicos, amiúde originadas em fatores políticos, ideológicos, culturais, socioeconómicos e ambientais, quanto das soluções sustentáveis e eficazes, aquelas que não menosprezam a boa burocracia.
Segundo o académico suíço, a complexidade da burocracia deve ser vista tanto na sua função institucional de garantir previsibilidade, legalidade, imparcialidade, evidência, transparência, proteção contra arbitrariedades, responsabilização e prestação de contas (“accountability”), quanto no efeito prático acumulado dos princípios, regras e procedimentos, a chamado “red tape”, que pode resultar em rigidez e morosidade administrativa, mas as quais são essenciais para os mecanismos de efetividade e eficácia dos diretos, deveres e garantias de todos os agentes da sociedade.
Concluindo, o discurso do “combate à burocracia” - tal como o do combate a outros problemas complexos, como a corrupção, desemprego, pobreza, etc – pode ser, portanto, perigoso se for entendido de forma acrítica, realista e, diria, inculta, ou seja, se dispensar os dados e evidências e assentar supostas verdades e credibilidades em mitos e estereótipos.
Um discurso assim habitualmente atinge, direta e indiretamente, tanto aqueles que trabalham no setor público, não distinguindo destinatários, ignora funções legítimas do aparelho e processo burocráticos, erode mecanismos de transparência, integridade e inovação institucionais e pode conduzir a reformas ineficazes ou até mesmo danosas ao sistema político representativo e à legitimidade democrática de exercício dos poderes do Estado, incluindo suas estruturas e pilares.
Isto porque a burocracia é tanto o corpo institucional, pessoal e funcional, quanto o sistema de regras, estruturas e procedimentos que implementa e realiza o Estado de direito, direitos e liberdades, e, ainda, arrisco a dizer, o estado protetor, inovador, moderno e criador e distribuidor de riqueza.
A falta de discernimento, conhecimento e prudência nesta matéria, sobretudo ao nível do discurso e da acusação, ainda que restrita à burocracia funcional ou de “papel”, arrisca-se a fomentar não apenas a ignorância e ineficácia da necessária reforma, como alimentar ciclos constantes, em níveis diversos, de atrasos, opacidades, injustiças, desigualdades e insucessos.
O autor, através de exemplos concretos e reais, constata e critica, ainda, o perigo de “transformar problemas políticos em questões de mera gestão”. Uma discussão que merece reflexão mais apurada e, portanto, artigo à parte. Na verdade, uma reflexão de todo o país e sua governação e administração públicas, para anão falar da academia nacional. Pela minha parte, tentarei não deixar de a fazer e aqui partilhar.
Sobre o discurso antiburocrático, outra vez
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