Como ser bom jurista… ou, simplesmente, justo
Frank Caprio praticava uma justiça humanista, prática, que partia da complexa realidade. Por isso, era conhecido ora como "o juiz mais gentil do mundo", ora como “o melhor juiz do mundo”.
Todos temos histórias na nossa vida. Diferente, é ter uma vida com história. Vidas que inspiram outras a viverem melhor e que mudam o mundo daquelas que as rodeiam e as ouvem. São vidas que não se definem pelas palavras ou por terceiros, antes pelas atitudes quotidianas dos próprios.
Nas diversas literaturas, são várias as designações aplicáveis a estas pessoas: visionárias (veem além do seu tempo, antecipam futuros possíveis), anti-heroínas (vistas como socialmente imperfeitas, ambíguas ou não virtuosas, mas de grandes feitos positivos para a humanidade), reformadoras (corrigem “sistemas” injustos e mudam mentalidades), originais (pessoas que não se limitam a aceitar o status quo, mas que procuram, com responsabilidade, criar, propor e implementar ideias novas, úteis e corajosas), contrárias (inconformados e inquietos, posicionam-se contra ou além do “mainstream”, desafiando normas e tradições, amiúde vistos como rebeldes ou incómodos, mas abrem espaço para novos paradigmas, tendo razão antes de tempo). Tantas outras designações restam, como mártires, revolucionários, ativistas ou, meramente, livres e independentes.
Na leitura social atual, sabemos que ser bom, corajoso, diferente e marcante para a organização, a comunidade ou, mesmo, a humanidade, não é requisito de sucesso. Pelo contrário. Infelizmente, o sucesso mede-se cada vez mais pela fidelidade sem integridade e sem alma a quem tem o poder de decisão. São dependentes de aprovação e nunca querem estar na oposição. Não admira que cargo se confunda com feito e carreira com competência, exceto, claro, para quem quer viver, simplesmente sendo, a sua história.
Certo é que estas pessoas fazem, habitualmente, história. Deixam marca por onde passam, pela sua singularidade, pelo bem comum que ensinam e difundem, pela sua integridade e impacto na vida, mentalidade e comportamento das pessoas. Porém, estas vidas extraordinárias, nem sempre conseguem obter tal reconhecimento ainda em vida.
Tal não aconteceu a Frank Caprio.
Juiz municipal e advogado no condado de Providence, estado norte-americano de Rhode Island (nos EUA, é possível exercer ambas as atividades), morreu como honorável cidadão, funcionário público e celebridade nacional e mundial, sobretudo das redes sociais. Tem milhares de milhões de visualizações das suas audiências, em vídeo, a maioria do programa “Caught in Providence”. Poderá este, aos mais incautos, lembrar os nossos “O Juiz Decide” (SIC) ou “A Sentença” (TVI), mas estes, ao contrário do norte-americano, são pura ficção.
Neste artigo, quero homenagear o cidadão jurista que foi Frank Caprio. Aqui, o seu obituário é mais importante que a sua biografia.
De facto, importa homenagear e reconhecer os ensinamentos da sua história de vida, praticamente toda ela vivida em Providence, Rhode Island, local onde nasceu, em 24 de novembro de 1936, no bairro Federal Hill, povoado de emigrantes italianos, como eram os seus ascendentes.
O pai era leiteiro e a mãe doméstica, ambos pais de cinco filhos. Caprio estudou em escolas públicas e trabalhava, enquanto estudante, como lavador de pratos e engraxador para ajudar sua família. Curiosamente, foi campeão estadual de wrestling aos 17 anos, e licenciou-se em Direito, em horário pós-laboral, aos 29 anos, após servir na Guarda Nacional de Rhode Island entre 1954 e 1962.
Frank (em rigor, nasceu Francesco) Caprio, foi juiz por quase 40 anos e distinguiu-se pela forma compassiva, empática e humilde como lidava com as pessoas que julgava, interagindo, também, com os seus familiares e amigos presentes. Escutava atentamente os depoentes, fazia perguntas interessadas e genuínas e, muitas vezes, optava por decisões de clemência quando percebia que a rigidez da lei colidia com as condições de elevada vulnerabilidade, sobretudo económica, social e familiar em que viviam os réus. Como escreveu no seu livro, sem versão portuguesa, “Compaixão no Tribunal - Histórias transformadoras do juiz mais gentil dos Estados Unidos”: “ser juiz é mais sobre a pessoa que está à nossa frente do que sobre Direito” (tradução minha).
Aplicava a justiça com equidade, em face do caso e das pessoas concretas, com proximidade, à medida da realidade de cada um.
As suas decisões foram muitas vezes lições de cidadania. Por exemplo, o caso de Victor Colella, um idoso de 96 anos, multado por excesso de velocidade, quando levava o filho com deficiência e cancro, a tratamentos médicos. Frank Caprio não só anulou a multa, como transformou a audiência num hino à paternidade. Pode ver aqui. Mas o juiz compassivo foi além. Tornou-se amigo dele, esteve presente no seu centésimo aniversário e dedicou-lhe uma homenagem quando faleceu, aos 101 anos. É a diferença entre os “givers” e os “takers”, na terminologia do psicólogo organizacional Adam Grant.
Praticava, portanto, uma justiça humanista, prática, que partia da complexa realidade. Paradoxalmente, a mais próxima do ideal de atingir “um mundo de justiça e liberdade para todos”. Por isso, era conhecido ora como "o juiz mais gentil do mundo", ora como “o melhor juiz do mundo”. A sua própria máxima resumia a filosofia: “A justiça não precisa de ser severa para ser respeitada”.
Além de jurista exemplar, foi um cidadão e ser humano extraordinário, que deixou uma marca profunda na vida comunitária de Rhode Island. Criou uma fundação com o nome da mãe, Filomena, bolsas de estudo em nome do pai, apoiou projetos educativos e sociais e manteve sempre viva a ideia de que a função pública só fazia sentido se fosse exercida com humildade e proximidade às pessoas, sobretudo as mais vulneráveis. Recebeu doutoramentos honoris causa, distinções cívicas e, sobretudo, o reconhecimento afetuoso de cidadãos que nunca esqueceram a sua bondade, empatia, decência e honorabilidade.
Faleceu em 20 de agosto de 2025, aos 88 anos, após uma difícil batalha contra o cancro de pâncreas.
Frank Caprio não foi, assim, somente um jurista íntegro, um juiz compassivo e um ser humano exemplar. Foi um servidor público crente na humanidade. Um cidadão que acreditou que a empatia, entrega e bondade também são uma forma de justiça. Uma forma de vida que prova, aos seus pares e demais semelhantes, que o Direito pode ser interpretado e aplicado com rigor sem perder a dimensão humana.
Na verdade, a justiça é a razão de ser da existência das leis e é essencial para uma boa vida individual e coletiva.
Mas a lição de Frank Caprio, a não técnica, a real, é a de que a justiça sem humanidade se torna injusta.
Frank Caprio provou-nos que é o Direito que nasce para as pessoas e não as pessoas que nascem para o Direito.
Costumava dizer que “Não estamos sozinhos neste mundo. Temos de confiar uns nos outros”. Bem-haja a todos aqueles que servem a comunidade, que abraçam a vida pública e que veem o mundo pelos seus próprios olhos.
Obrigado. Descanse em Paz, Francesco.
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