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Mariana Moniz Psicóloga Clínica e Forense
01.11.2024

O culto da partilha não consentida de imagens íntimas

Não deveremos pôr a responsabilidade nas vítimas, alegando que estas não deviam ter partilhado conteúdo íntimo com quem mais confiam, pois a realidade é que têm o direito de viver a sua sexualidade e intimidade com confiança.

O contínuo avanço das tecnologias e a explosão, a nível mundial, do número de utilizadores de redes sociais, nas últimas décadas, significa que a grande maioria da população dos países desenvolvidos recorre a estes meios para comunicar com familiares, amigos ou mesmo desconhecidos. Assiste-se, como tal, a um contacto nunca visto entre pessoas de diferentes países, culturas e realidades, o que, incontestavelmente, traz mais-valias: esta globalização permite reduzir distâncias entre familiares que vivem, ou trabalham, em países diferentes, esbate preconceitos em relação a culturas anteriormente pouco conhecidas ou entendidas e permite reduzir a sensação de isolamento social ou falta de suporte, em grupos minoritários. No entanto, se este acesso às redes permite aumentar a sensação de comunidade e de pertença, é igualmente verdade que pode, no lado oposto deste espectro, potenciar experiências de vitimação e abuso.

Se pensarmos no modo como estas tecnologias podem ser usadas de forma perversa, somos facilmente transportados para os eventos da passada semana, designadamente para a notícia de que um grupo com cerca de 70 mil pessoas, na plataforma Telegram, partilhava conteúdo íntimo de milhares de mulheres, sem o seu consentimento. Esta notícia foi perturbante por diversos motivos, que vão desde a devassa da vida privada das vítimas, ao facto de os perpetradores serem, muitas vezes, familiares, amigos ou conhecidos destas mulheres, ao número colossal de participantes nesta dita comunidade. Como se pode imaginar, 70 mil pessoas conseguem encher um estádio de futebol, o que aumenta o choque e repugna em relação à notícia.

Esta situação contribuiu, certamente, para a fomentação de um clima de desconfiança e medo, onde pessoas anteriormente confiáveis passaram a ser alvo de suspeita e onde é colocada em causa o que se sabe acerca de alguém com quem se partilha uma vida. E, ainda que se reconheça a particular abominação que constitui a existência de um grupo de tamanha dimensão, a realidade é que a partilha não consentida de conteúdo íntimo não é recente. Importa, como tal, analisar o que leva estas pessoas a devassar a intimidade de terceiros, o impacto que estes atos têm na vida das vítimas e o que poderemos fazer para limitar, futuramente, estas situações.

A partilha não consentida de conteúdo íntimo, por vezes designada por revenge porn (pornografia de vingança), é definida como a disseminação de material íntimo, sem o consentimento da vítima. Reforce-se aqui que, mesmo que a vítima tenha acedido, num primeiro momento, em gravar e partilhar o conteúdo com o perpetrador (por exemplo, um ex-namorado), a sua posterior disseminação para terceiros não foi consentida. Outras vezes, as imagens são recolhidas sem conhecimento ou autorização das vítimas.

Este fenómeno pode ocorrer em diversos contextos. A título de exemplo, pode ser mais bem compreendido quando inserido num continuum de experiências de violência sexual ou violência doméstica, ou seja, como uma nova forma de perpetrar abuso ou violência sexual em relações abusivas. O termo "vingança" pode, assim, ser considerado impreciso, dado que a disseminação de imagens íntimas não ocorre, necessariamente, após o término na relação, ou como consequência de um comportamento "incorreto" da vítima e, portanto, merecedor de retaliação. Antes, esta partilha poderá ser utilizada como forma de ameaçar, coagir e controlar a vítima, seja qual for o estado atual da relação. Trata-se, portanto, de uma expansão do arsenal utilizado pelos agressores contra as vítimas.

Por outro lado, reconhecemos também, no caso do grupo de Telegram, que nem todo o conteúdo foi recolhido com conhecimento das vítimas. Efetivamente, este tipo de crime pode adotar diversas formas: as imagens posteriormente disseminadas podem ser recolhidas sem o conhecimento de quem é gravado/fotografado (por exemplo, em situações de voyerismo), com o seu conhecimento, mas sem o seu consentimento (por exemplo, coagindo e ameaçando as vítimas a enviar este tipo de imagens), ou, mais recentemente, recorrendo a tecnologia de Inteligência Artificial (os ditos deepfake, onde imagens pornográficas das vítimas são geradas recorrendo a IA e, depois, partilhadas).

Independentemente do modus operandi, a partilha não consentida de conteúdo íntimo tem um impacto significativo nas vítimas, designadamente sintomas traumáticos, uma perda debilitante da autoestima, ansiedade, ataques de pânico, sentimentos de humilhação e vergonha, ideação suicida, entre outros. Em função da disseminação deste conteúdo, algumas vítimas perdem a sua rede de suporte social, o seu emprego e são alvo de assédio verbal e físico, perseguição e subsequentes experiências de vitimação. Por outro lado, a consciência de que o material que se encontra online nunca desaparece verdadeiramente intensifica estes sintomas, levando a que as vítimas se sintam constantemente hipervigilantes, na crença de que o material irá ressurgir.

No entanto, não obstante o claro impacto nocivo que estas experiências têm nas suas vítimas, estas continuam a ser, não raras vezes, culpabilizadas, com narrativas de "elas também não deviam ter enviado essas fotos/vídeos" e "puseram-se a jeito, nunca se partilha fotos íntimas". Este tipo de verbalizações não só negligencia o sofrimento de quem viu a sua vida privada violada, como contribui para a internalização da culpa nas vítimas e para a relutância em denunciar as situações às autoridades competentes.

Já nos perpetradores, há uma tendência para a minimização dos seus atos e um potencial aumento de crenças de legitimação da violência sexual (por exemplo, se a vítima foi infiel ou pôs fim à relação, esta partilha pode ser vista como "bem-feita" ou "merecida" não só por quem dissemina as imagens, como pelos que recebem esse material).

Dificilmente conseguimos prever este tipo de situações, muito menos quando o material é recolhido sem o conhecimento da vítima. Não deveremos pôr a responsabilidade nas vítimas, alegando que estas não deviam ter partilhado conteúdo íntimo com quem mais confiam, pois a realidade é que têm o direito de viver a sua sexualidade e intimidade com confiança. Pelo contrário, a prevenção deverá ser focada em potenciais perpetradores, mediante medidas de sensibilização sobre o tema. Se impossível prevenir, a denúncia é fundamental. Não esqueçamos que este tipo de partilha é crime e, como tal, deve ser travada. Não devemos, portanto, banalizar estas situações quando tomamos conhecimento delas ou ignorá-las. Temos todos a responsabilidade de denunciar e impedir uma subsequente partilha do material, tendo em mente que a inação pode, por vezes, ser tão nociva como a ação.

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