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Margarida Reis Secretária-geral da Associação Sindical dos Juízes Portugueses
28.11.2025

Quando os tribunais resolvem o que os impostos complicam

Há um universo onde o papel dos tribunais fiscais se revela particularmente importante, que é o das contraordenações fiscais.

Cumprir as obrigações fiscais é, para a maior parte dos contribuintes, um exercício de responsabilidade cívica. No entanto, a experiência demonstra que, no contacto com a realidade, a aplicação das regras fiscais nem sempre responde à diversidade das situações que os contribuintes enfrentam. Mesmo num sistema de autoliquidação pensado para ser simples, surgem frequentemente situações em que o enquadramento legal suscita dúvidas legítimas. É precisamente perante estas situações frequentes e muitas vezes inesperadas que a intervenção dos tribunais fiscais se torna decisiva.

O IRS é talvez o exemplo mais evidente. Todos os anos, muitos contribuintes apercebem-se de que determinadas despesas de saúde ou educação não foram refletidas como esperavam, situações em que os dados pré preenchidos não refletem integralmente a realidade declarada, ou situações familiares que a declaração pré-preenchida não reflete com rigor. Quando estas divergências não podem ser resolvidas de forma imediata, é no tribunal que cada situação é apreciada de acordo com as suas particularidades, garantindo uma aplicação da lei ajustada à realidade concreta de cada contribuinte.

Também no IVA são frequentes os litígios sobre a sujeição ou isenção de determinadas operações, sobretudo para pequenos empresários e trabalhadores independentes que enfrentam regras densas e tecnicamente exigentes. Uma decisão incorreta pode resultar numa liquidação pesada e inesperada. A jurisprudência fiscal tem permitido corrigir estes enquadramentos, clarificando conceitos e trazendo segurança jurídica a milhares de operadores económicos.

No IMI e no IMT, os tribunais têm igualmente desempenhado um papel relevante. A determinação do valor patrimonial dos imóveis nem sempre traduz a sua verdadeira natureza ou estado de conservação, especialmente quando resultou de avaliações antigas ou de métodos padronizados. A intervenção judicial tem contribuído para ajustar estes valores à realidade concreta, evitando que o contribuinte suporte encargos que não correspondem ao valor real do bem.

Mas há um outro universo onde o papel dos tribunais fiscais se revela particularmente importante, que é o das contraordenações fiscais.

Trata-se de um domínio muitas vezes menos visível, mas que ainda assim dá lugar, todos os anos, a milhares de processos resultantes de uma multiplicidade de situações suscetíveis de constituir contraordenação, como declarações entregues fora de prazo, atrasos ou erros na comunicação de faturas, falta de envio de informações fiscalmente obrigatórias, incorreções na organização da contabilidade ou falhas no cumprimento de outras obrigações acessórias que muitos contribuintes só identificam quando já existe uma coima. A lei prevê coimas significativas, às vezes superiores ao próprio imposto em causa, e muitas destas infrações resultam de erros involuntários ou de interpretações razoáveis, mas divergentes da Administração Tributária.

O controlo jurisdicional é aqui indispensável. Os tribunais avaliam se a infração existiu, se a culpa foi efetivamente demonstrada e se a coima aplicada é proporcionada, como exige o Regime Geral das Infrações Tributárias. A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo tem reiterado que as coimas não podem ser uma reação automática, devendo respeitar princípios constitucionais como a proporcionalidade, a culpa e a tipicidade.

Esta intervenção é fundamental para impedir que pequenos lapsos formais se transformem em sanções desmedidas, reforçando a confiança dos contribuintes e evitando que a punição fiscal se torne um fim em si mesma.

Também a execução fiscal, pela sua natureza, exige grande cuidado. Trata-se de um procedimento imprescindível para que o Estado recupere dívidas, mas que mobiliza instrumentos de grande impacto, como penhoras, vendas executivas, ou compensações automáticas. A jurisprudência tem definido limites para a utilização destes mecanismos, assegurando que a cobrança se realiza segundo os critérios legais aplicáveis e evitando que medidas excessivas coloquem os contribuintes mais vulneráveis numa situação irreversível.

A relevância dos tribunais fiscais resulta, em grande medida, da forma como garantem simultaneamente a proteção dos direitos dos contribuintes e o equilíbrio do próprio sistema fiscal. Cada decisão não apenas resolve um litígio individual, como contribui para uma aplicação mais estável e previsível da lei, contribuindo assim para melhorar a qualidade da atuação administrativa e reduz a margem de incerteza para contribuintes e operadores económicos.

Reconhecer a importância dos tribunais tributários é reconhecer que desempenham uma função absolutamente indispensável no funcionamento equilibrado do Estado e na vida das pessoas e das empresas. A sua intervenção projeta efeitos que ultrapassam o domínio fiscal, influenciando a estabilidade económica, a segurança jurídica e a confiança de quem depende de decisões claras e rigorosas.

Para cumprirem esta missão num contexto de crescente complexidade, os tribunais fiscais necessitam de meios de funcionamento adequados, com instalações dignas, pessoal judicial suficiente e estruturas de apoio que assegurem a tramitação eficiente dos processos.

Contudo, esta condição está longe de estar garantida, sobretudo nos tribunais de segunda instância, onde a falta de juízes é particularmente grave. Esta insuficiência gera atrasos significativos e coloca uma pressão acrescida sobre quem ali exerce funções, com impacto direto na vida de contribuintes e empresas que dependem de decisões essenciais para a sua estabilidade.

Assegurar estes meios é, por isso, indispensável para garantir uma justiça fiscal eficaz, acessível e capaz de acompanhar as exigências de um sistema que necessita cada vez mais de precisão, previsibilidade e responsabilidade

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