Quem sai dos seus
O Mecanismo Nacional Anticorrupção degenerou. E isso é uma excelente notícia.
Sem grande alarido, o novo presidente do Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC), o juiz conselheiro José Mouraz Lopes, promoveu há dias um encontro informal com jornalistas para apresentar a programação que o organismo está a preparar em torno do Dia Internacional Contra a Corrupção, em dezembro. Mas o melhor do encontro não foi o anúncio de festividades. A nova liderança da agência de prevenção da corrupção, que está em funções desde junho, fez uma coisa inusitada: mostrou serviço.
O encontro com os jornalistas, reportou a Lusa, serviu também para adiantar que, desde setembro, o MENAC abriu 11 processos de contraordenação, contra 10 entidades públicas e uma privada, por incumprirem as suas obrigações de aplicar planos e instrumentos de prevenção da corrupção, como manda a lei. Esse número deverá aumentar muito nos próximos tempos, segundo a vice-presidente do organismo, Ana Paula Lourenço.
Além de finalmente se ver alguma ação na fiscalização que compete ao Mecanismo Nacional Anticorrupção, o presidente do organismo revelou também que começaram a ser usadas ferramentas de inteligência artificial para apoiar esse trabalho – uma forma útil de monitorizar as perto de 14 mil entidades públicas e privadas que, por terem mais de 50 funcionários, caem sob a alçada fiscalizadora do MENAC. A inteligência artificial vai também compensando a falta de trabalhadores que continua a ameaçar o bom desempenho da agência. Mouraz Lopes indicou que propôs ao Governo um quadro de pessoal de 50 pessoas. O quadro atual é de 30, das quais estão preenchidas só 19, em parte porque o MENAC continua limitado a recrutar funcionários em regime de mobilidade, ou seja, que já sejam trabalhadores públicos colocados noutros organismos.
O encontro com os jornalistas serviu ainda para sinalizar prioridades e áreas de preocupação do Mecanismo para o futuro imediato. À cabeça está o aumento do investimento público na área da Defesa, que acarreta enormes riscos de corrupção. É um alerta urgente e necessário. Mouraz Lopes tem uma larga experiência no Tribunal de Contas, pelo que conhece bem a forma como a conjugação tóxica de dinheiro público e contratos sigilosos alimenta uma máquina corruptora com enormes prejuízos para o país. Portugal compara muito mal com os parceiros da NATO na transparência e integridade dos processos de contratação pública na Defesa. Despejar, de repente, mais umas centenas ou milhares de milhões de euros nesta máquina de favores e comissões é derramar gasolina no fogo. É bom saber que o MENAC não está a dormir.
Tudo isto devia ser banal: um organismo público encarregue de prevenir a corrupção presta contas do que está a fazer, usa de forma inteligente os recursos que tem, sinalizando défices mas sem perder o dia todo a queixar-se da falta de meios, antecipa riscos e promete atenção especial a áreas que justificam preocupações acrescidas. Tudo isto devia ser banal, mas não é.
Portugal tem uma má infraestrutura de combate à corrupção. Por opção manhosa do legislador, fomos criando organismos dispersos, com mandatos estreitos e sem coordenação entre si, que entregamos depois a lideranças burocráticas, sem noção da sua real missão. É assim com uma Entidade das Contas e Financiamentos Políticos que passa a vida a mastigar papel e a litigar minudências contabilísticas, sem nunca tocar no mal oculto dos sacos azuis e da captura dos partidos políticos por financiadores de bolsos fundos – ou a abordar a relação tóxica entre financiamento político e contratação pública. É assim com uma Entidade para a Transparência mais empenhada em proteger a privacidade dos políticos do que a transparência (que vem no nome) dos seus interesses pessoais, financeiros e de negócio. E era assim com o Mecanismo Nacional Anticorrupção, criado por lei em 2019 mas que demorou mais dois anos a sair do papel e, até agora, não tinha feito nada que se visse.
Os problemas de fundo continuam. O poder político gosta de dispersar competências por micro-organismos públicos pouco capacitados. Gosta de impor obrigações de cumprimento por decreto legislativo, criando cargas burocráticas sobre as organizações, com pouco impacto real. Mas, dentro do mau, que haja liderança! O novo conselho de administração do MENAC, nomeado depois de uns ajustes feitos ao organismo pelo Governo de Montenegro, vem com sentido de missão, uma noção clara de riscos e prioridades, e uma equipa experiente e conhecedora. Nisso, degenera no que tem sido norma nas entidades de controlo em Portugal. Ainda bem! A competência e clareza de visão demonstrada num banal encontro com jornalistas, que devia ser corriqueira mas não é, acende uma luz de esperança num cantinho da organização do Estado. O Mecanismo Nacional Anticorrupção não sai aos seus – sai dos seus, afasta-se de uma norma de dispersão, burocratização inútil e falta de foco que nos tem feito muito mal. Que assim continue, e que ensine alguma coisa ao país.
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