Sábado – Pense por si

O extraordinário universo de Patrícia Portela

Quando se desenha um risco, cria-se um lado e um outro. Quando se desenha um círculo, cria-se o interior e o exterior. Ambos se definem em confronto um com o outro. Sem um, o outro não existe

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Edição de 5 a 11 de agosto
Mário Rufino 18 de julho de 2016 às 18:09

Quando se desenha um risco, cria-se um lado e um outro. Quando se desenha um círculo, cria-se o interior e o exterior. Ambos se definem em confronto um com o outro. Sem um, o outro não existe. Patrícia Portela (n.1974) especula, ensaia, e conta a possível existência de Acácio Nobre, cujo nome próprio significa "aquele que não tem maldade". Em 1999, a autora descobriu em casa dos seus avós uma pessoana arca com textos e projectos inacabados de Acácio Nobre, que terá supostamente nascido em 1869 e morrido em 1968. Os documentos que compõem "A Colecção Privada de Acácio Nobre" (Caminho) permitem conhecer um personagem que se destaca no seu tempo.Patrícia Portela deixa muito do sentido entregue à capacidade de interpretação do leitor. É este que terá de complementar os muitos espaços deixados em aberto. A relação entre texto, autor e leitor - tal como defende "reader-response criticism" - é essencial para a construção do sentido. Ao leitor não cabe a mera recepção do sentido; ele constrói-o. Tem um papel tão criativo como o do autor. E está dependente tanto como o autor da condição de plausibilidade. Mais do que ligar eventos, ou factos, o leitor tenta definir o que é proposto pela autora: um personagem invulgar chamado Acácio Nobre. Acácio Nobre é definido tanto pela ausência, como pela presença em locais e acontecimentos. É a verdade e a ficção que o desenham. O pouco portátil fonógrafo, transportado por Acácio Nobre, é um exemplo entre muitos. O fonógrafo grava o ruído da ausência do seu detentor. Acácio Nobre movimenta-se sempre na margem do visível. A pergunta percorre todo o livro: Quem é ele? "De acordo com os registos da PIDE, Acácio nem sempre foi Acácio. Também se chamou Fritz, Edward Said, Antero Q., Naussibaum e Edward Bey. O nome de Acácio Nobre surge entre 1890 e 1918, aparecendo e reaparecendo até 1954, período em que foge de Portugal, é preso em Espanha, desaparece no sul da Alemanha, é dado como morto em Baku para ser reencontrado na Bélgica, vislumbrado em Paris e fechado a sete chaves em Amesterdão num asilo onde se reencontrou e conviveu com a irmã de Van Gogh."O trajecto deste indivíduo, "fantástico gerador de novas realidades", não começa neste livro. Patrícia Portela utiliza diversas linguagens para delimitar a existência de Acácio Nobre. A personagem é peça central em diversas formas de expressão artística. "O Chiado de Acácio Nobre" (2009) é o primeiro registo. A peça sonora volante foi apresentada no festival Temps d`images/Museu do Chiado. "Cidades ao Alto", vídeo a partir da obra deste personagem, foi apresentado no mesmo ano. A performance-concerto que dá o título a esta obra esteve no Teatro Municipal Maria Matos, em Lisboa no ano de 2010. Já mais próximo da edição deste livro, "Parasomnia", reconstituição de uma instalação de Acácio Nobre para o Museu Chiado, foi finalista Prémio Sonae Media Art em 2015.É, como se pode confirmar, uma criação central para a obra de Patrícia Portela. A pluralidade (ou necessidade) de expressões artísticas demonstra a existência de diversas perspectivas sobre a realidade. Peça a peça, a autora vai montando uma textualidade com múltiplas entradas sobre uma existência hipotética neste universo paralelo. A textualidade é radicalizada em várias combinações.Em "Conceito de Texto", livro de Umberto Eco, é proposto que "todo o signo é um texto virtual - ou uma virtualidade de textos - e que todo o texto é a expansão de um signo, inscrito num universo sígnico em forma de enciclopédia"Patrícia Portela aplica essa ideia na construção de um universo formado por diferentes e complementares linguagens. A ambiguidade é uma das riquezas deste livro. Há desenvolvimento de várias ideias, apoiado em diferentes documentos. Não há uma resolução. Nada termina. A vida de Acácio Nobre continuará, presume-se, a ser (re) construída. A linguagem literária não é suporte suficiente para o conhecer. Nem pode, quando a criadora consegue utilizar magistralmente diversos registos.Poder-se-á dizer, inclusive, que a existência dessa pluralidade deve-se à noção de a existência ser composta por realidades, ou formas diferentes de analisar a realidade. Em Acácio Nobre existe a convicção de que "para mudar o mundo não era necessário tocar-lhe na sua carne, mas sim no seu som, na ressonância que todos nós produzimos no mundo, no efeito das nossas vibrações em todos os objectos e em todos os outros «ocupantes» terrestres»". Eis uma perspectiva emancipada da ditadura do visível. A arquitectura e a geometria são essenciais no seu pensamento. Na criação de Patrícia Portela, nota-se a influência de Gonçalo M. Tavares, Afonso Cruz e, evidentemente, Fernando Pessoa. O olhar, em Gonçalo M Tavares, é disciplinado pela arquitectura. A pólis é essencial na obra do autor de "Atlas do corpo e da imaginação". Em Afonso Cruz, a fronteira entre realidade e ficção é esbatida radicalmente.Patrícia Portela põe em causa as fronteiras dos géneros literários. A sua capacidade criativa estende-se a várias áreas e manifesta-se em obras difíceis de catalogar. Livros como "O Banquete" (Caminho), "Wasteband" (Caminho), ou "Para cima e não para norte" (Caminho) já haviam mostrado uma autora que é imperioso acompanhar. Patrícia Portela apresenta um rico, criativo e invulgar discurso na literatura portuguesa.

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