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Entrevista
Bruno Vieira Amaral fez do homicídio do primo um romance
Foto: Eduardo Martins
  • 753

Bruno Vieira Amaral fez do homicídio do primo um romance

09.04.2017 19:01 por Gonçalo Correia 84
"Todas as formas de narrativa tentam recuperar e resgatar os nossos mortos", diz o vencedor do Prémio José Saramago ao GPS/SÁBADO. O novo romance centra-se num primo do escritor, brutalmente assassinado há 30 anos
Irrompeu com estrondo no mundo do romance - essa casa onde "cabem todos os géneros, todas as linguagens" - em 2013, com As Primeiras Coisas, obra que lhe valeu vários prémios - do PEN Clube aos prémios literários Fernando Namora e José Saramago.

Quase quatro anos depois - e já depois de publicar um livro sobre igrejas cristãs não católicas, intitulado Aleluia -, Bruno Vieira Amaral, nascido numa família de testemunhas de Jeová mas "sem religião", volta a casa. O seu segundo romance, Hoje Estarás Comigo no Paraíso, já chegou às livrarias e parte de uma investigação do autor sobre a morte do seu primo João Jorge, brutalmente assassinado há 30 anos em circunstâncias misteriosas.

Partindo de experiências pessoais da infância e juventude, mais ou menos moldadas pela memória, o escritor transforma-as em matéria literária, para traçar a história do primo e o recordar. Até porque, como diz, "todas as formas de narrativa tentam recuperar os nossos mortos, resgatá-los do esquecimento".

Quanto tempo demorou a investigar o homicídio e a escrever o romance?
Entre ir à procura de informação, falar com algumas pessoas de família e amigos, ir à procura das notícias que saíram na imprensa na altura, consultar os processos judiciais e entregar o livro à editora, passaram três anos e meio.

Quando começou todo o processo, já tinha em mente que seria o ponto de partida para um romance
Não, não tinha a ideia de que seria um romance. A minha primeira ideia, logo depois de ter tido acesso à notícia do jornal que dava conta do homicídio [do primo João Jorge], era fazer um livro de não ficção, em que reunisse testemunhos das pessoas que que conheciam o João Jorge e que estiveram envolvidas de alguma forma naqueles acontecimentos. Mas pouco depois de ter começado a investigação percebi que aqueles factos talvez não fossem suficientes para contar a história que eu queria contar através de um livro de não-ficção. Mas eram suficientes para iniciar um romance. E aí eu percebi que ficaria muito limitado pelos factos se decidisse escrever um livro de não ficção. Só que eu não queria ficar limitado, porque queria explorar outras possibilidades e essas possibilidades estavam mais próximas da ficção do que propriamente de um livro de não ficção.

Na sinopse do livro, é dito que o Bruno usa esta investigação como estratégia de recuperação e construção da sua própria memória e que a sua ligação ao seu primo é mais ou menos forjada pelos mecanismos da memória. No livro fala também de como os adultos deixam de procurar palavras no dicionário por presumirem ter um domínio sobre a linguagem que é também um domínio sobre o mundo. Quis contrariar uma possível ilusão de haver um domínio sobre a memória - que seria também um domínio de cada um sobre o seu passado?
A memória é sempre uma construção. E quanto maior é a nossa capacidade de construir a memória maior é o nosso domínio sobre a nossa identidade e o nosso passado. Obviamente que muitas vezes esse domínio é ilusório porque há coisas que nos escapam, há memórias falsas, enganadoras, e muitas vezes o que acontece é que nós julgamos que algo aconteceu de uma determinada maneira e usamos essa memória como uma espécie de alicerce da nossa identidade. E não é bem assim - as coisas podem não se ter passado assim. O que acontece é que muitas vezes nós preferimos essa ilusão, porque o custo de pôr em causa esses alicerces, que são os alicerces da nossa identidade, é muito elevado. Então preferimos agarrar-nos a essa ilusão.

O que está no livro... como é um romance, claro que é um processo de construção e invenção da memória deste narrador que partilha comigo o nome e quase a história toda (risos). Mas é uma construção que eu espero que esteja feita de tal forma que se torne convincente para o leitor, que o leitor acredite que aquilo que o narrador apresenta como sendo memórias são memórias factuais, de coisas que aconteceram. Se é assim ou não - esse é o jogo da literatura.

Importa-lhe então sobretudo a verosimilhança?
(Pausa) Mais do que a verosimilhança, o que me interessa é uma verdade. O romance é um organismo e tudo aquilo que nós decidimos pôr no romance e tudo aquilo que decidimos omitir do romance visa esse efeito de verdade, mais do que de verosimilhança. Um efeito de verdade. Para que o leitor em vez de se perguntar se aquilo aconteceu ou não fique com a certeza que mesmo que não tenha acontecido é verdade. Porque os factos que estão no livro só são válidos dentro daquele universo. E são usados para emprestar verdade ao livro, às personagens.

Quando eu decido realçar um pormenor de um personagem, eu posso estar a omitir toda uma outra série de características dessa personagem. Se eu elejo aquele elemento, aquela característica, é porque estou convencido que serve a verdade e serve a verdade do personagem. Essa é a liberdade que eu tenho enquanto romancista que não teria num livro de não ficção. Claro que num livro de não ficção nós também seleccionamos e encadeamos os factos mas estamos muito mais limitados, como é óbvio, porque não podemos manipular da mesma forma os factos. E é essa liberdade que tenho no romance. Para que o romance funcione, que esse é que é o verdadeiro objectivo.

Eu chego a uma altura em que já não me interessa - nem eu próprio sei, já - o que é que é inventado e o que é que são memórias reais que eu usei no livro, porque a partir de uma determinada altura só me interessa o funcionamento do romance, que o romance esteja vivo. No fundo é fazer tudo para que aquela massa de factos inertes ganhe vida. E é preciso ter muito cuidado com a informação que revelamos, quando é que a revelamos, a informação que omitimos, porque é que omitimos... todas essas decisões visam esse objectivo final, que é que o livro funcione. Ou que respire - eu diria que é mais respirar do que funcionar, porque creio que é um organismo vivo.

Esse processo de selecção dos factos para que ganhem vida própria no romance parece ser o mesmo para a "construção" da memória no romance. Porque as personagens também "seleccionam" tanto as memórias que têm do João Jorge - as que revelam ao narrador - como a própria forma como reagiram aos acontecimentos. 
Todos nós... o processo da memória do narrador eu creio que é o processo de construção da memória de qualquer um de nós. Que é construirmos uma narrativa que que faça sentido, por um lado, e que nos favoreça. No fundo o que nós fazemos, ao olhar para trás, é tentar ligar as memórias de forma a que elas constituam um todo que faça sentido, que parece caminhar com algum destino e que nos beneficie, que nos seja favorável. E aí esse processo de construção é o processo de construção da memória de qualquer pessoa.

Claro que há semelhanças com a construção de um romance porque há uma selecção de factos e há um determinado encadeamento dos factos para que aquilo faça sentido. E nós somos animais que contamos histórias - desde logo a nós próprios. O eu, a construção do eu, é uma história que nós contamos a nós próprios. Nós somos muito diferentes: eu, hoje, 30 anos depois da morte do meu primo, o que é que me liga àquela criança que eu era na altura? O que me liga é esta capacidade de seleccionar os factos e ir traçando esse trajecto que une essa criança que eu fui à pessoa que agora escreveu o livro. Haverá necessariamente essa semelhança.

Há algum tempo, num texto paralelo, escreveu: "Tal como os restantes rituais, a literatura não traz ninguém de volta, mas ajuda os vivos a sobreviver num presente partido, mais que imperfeito". Aplicaria isso a este romance?
Sim, sim. Eu escrevi esse texto com o livro em mente. Obviamente não referi o livro, mas fi-lo com o livro em mente, porque acho que todos os livros e todas as formas de narrativa de alguma forma tentam recuperar e resgatar esses mortos - os nossos mortos -, tentam dar-lhes uma continuidade, resgatá-los do esquecimento. Quando nós escrevemos sobre alguém de que nos lembramos sentimos um poder grande. Pode ser ilusório, um poder de de alguma forma vencer a morte - ou pelo menos adiar a morte definitiva que é o esquecimento.

Manter essa memória viva - por exemplo, a do João Jorge; mantê-la viva - é no fundo estar a prolongar não a vida física mas a memória. Há uma expressão - não sei se é um ditado ou de quem é a autoria - que diz que nós só morremos quando a última pessoa que se lembra de nós morre. E eu acho que a literatura é isso, é prolongar. E este livro em particular é prolongar a vida, a memória das pessoas. Nesse texto também refiro o versículo bíblico que está na origem do título [do livro], quando um dos ladrões que é crucificado com Jesus lhe diz: se tu és filho de Deus, porque é que não nos salvas? E o outro não pede a Jesus que o salve, pede que se lembre dele. E então Jesus responde: em verdade te digo, hoje estarás comigo no paraíso. Acho que esse diálogo breve é fundamental, porque o que ele pede de facto é que Jesus se lembre dele, não que o salve mas que se lembre dele - que é uma forma de salvação.

Isso também me recorda um pouco os passeios que o narrador, Bruno - não sei se também o escritor -, fazia pelo cemitério. "Ao passar por campos desconhecidos, sentia-me poderoso a reparar injustiça, a salvá-los do esquecimento, dando um sentido póstumo às suas vidas".
Eu sempre gostei muito de ir ao cemitério e visitar a campa do meu avô, que era e ainda é a única pessoa da minha família naquele cemitério [do livro]. E gostava muito de visitar, passar pelas campas de pessoas que eu tinha conhecido, pessoas lá do bairro. E sentia de facto essa tranquilidade, esse poder de saber que eu conheci aquelas pessoas. As pessoas não sentem nada - os mortos não sentem nada - mas para mim, mesmo na minha adolescência, era importante visitar esses lugares e reencontrar aí aquelas pessoas. E de vez em quando ainda o faço e sinto que isso dá algum sentido à nossa vida. Não sou uma pessoa religiosa, não tenho religião. Se calhar é um ritual de comunhão, de honra, é um ritual pessoal, que eu realizo quase como uma espécie de religião pessoal.

Referia há pouco que o objectivo principal do romance seria a transmissão de uma verdade - literária, pelo menos. No romance anterior, por exemplo, sentiu uma reacção diferente dos leitores que estão mais próximos dos factos que trabalhou, face aos outros, que estão mais afastados dessa realidade? 
Necessariamente [a reacção] é diferente. As pessoas que conhecem aquela realidade e leram o livro naturalmente foram à procura daqueles elementos que conseguiam identificar. É uma condição da leitura para aquelas pessoas. Eu acho que não é a melhor forma de ler o livro, mas obviamente quem conheceu aquela realidade como eu a conheci é natural que depois entre nesse jogo de tentar identificar - porque vai reconhecer lugares, vai reconhecer até pessoas. Mas eu não creio que seja a leitura mais proveitosa, ainda que perceba que haja essa tentação.

As leituras são necessariamente distintas. Mas também houve casos de pessoas que sendo de uma geração diferente e não tendo tido nunca nenhum contacto com aquele bairro ou sequer com outro bairro parecido, se reviram naquelas personagens, naquele ambiente. E foi o que eu procurei fazer - haverá no romance elementos que ultrapassam aquela fronteira geográfica, que estão para além disso. Aliás, não me interessava fazer uma coisa que só interessasse às pessoas do bairro... Agora, a verdade é que eu conheci bem aquela realidade e senti-me à vontade para escrever sobre uma realidade que eu conhecia bem, porque tinha ali uma série de elementos guardados dentro de mim que só tive de me sentar e os convocar. Mas depois para o leitor é uma experiência de leitura diferente - como por exemplo é uma experiência de leitura diferente se alguém da minha família ler. Isso necessariamente é diferente.

Isso aconteceu com este livro - alguém da sua família já o leu?
Não, leram alguns excertos. A minha mãe já começou a ler e já me questionou sobre a memória, porque eu digo no livro que ela tinha uma memória falsa [sobre onde estava quando João Jorge morreu] e ela já não se lembra muito bem. E eu também já não sei muito bem se ela tinha essa memória ou não.

Interessa que resulte no romance.
Claro. Eu próprio já não sei se a minha mãe me disse aquilo [que refere no livro] ou não. Isso não é relevante. Se eu for a pensar bem, não consigo dizer com toda a certeza: isto aconteceu ou não aconteceu. A verdade é que no romance acontece.

Disse-me que trabalhou três anos e meio neste livro. Desde aí, ganhou vários prémios pelo primeiro romance, um dos quais o Prémio Saramago. Sentiu algum peso?
Não, não senti peso nenhum. O peso estará em quem criou expectativas, estará nos leitores, eventualmente nos editores, não sei. Eu não [senti], porque como já disse comecei a escrever o livro antes ainda do outro ter sido publicado. Portanto eu não sabia que livro é que ia resultar, mas sabia o que é que queria, tinha o tema, sabia o livro que eu queria escrever. E foi isso que fiz. Ao longo destes três anos fiz muitas outras coisas - publiquei um outro livro de não-ficção na Fundação Francisco Manuel dos Santos e fiz uma série de coisas, desde traduções a trabalhos com a imprensa.

Mas o livro acompanhou-me sempre. E foi-se transformando. A verdade é que, como eu não tinha um plano definido do que  seria o livro, ele foi-se transformando à medida que eu também ia descobrindo mais coisas e ia abrindo caminhos, às vezes por acaso - houve um livro que me caiu por acaso nos braços, por assim dizer, e que me abriu um caminho e que acabei por seguir no livro que escrevi. Às vezes estava a ouvir uma música, também por acaso - alguém que partilhou uma música numa rede social - e isso abria outro caminho para o livro. Portanto, enquanto o escrevia, o livro era aberto a todos esses estímulos e influências. E nunca estive a pensar em prémios e naquilo que estava para trás. Claro que fiquei muito contente quando os recebi, mas no processo de escrita a minha fasquia sou eu que a estabeleço, não são os prémios, não são os críticos, não são os leitores.

Relativamente ao primeiro romance referiu três obras que lhe serviram de inspiração [As Pequenas Memórias, de José Saramago, A Vida Como Ela É, de Nélson Rodrigues, e O Que Diz Molero, de Dinis Machado] . Neste caso, há alguma obra que tenha ou servido de inspiração, ou cujo esqueleto o Bruno sinta que dialoga de alguma forma com este romance?
Há várias... não da mesma forma que esses três livros que referi, do Dinis Machado, José Saramago e Nélson Rodrigues, que serviram para enquadrar o outro. Aqui houve vários livros que de alguma forma entraram também neste livro - mais do que referências exteriores, mais do que terem servido como uma espécie de baliza, estão dentro, quase que fazem parte do tecido deste livro. Livros de ficção e de não-ficção.  Um dos mais importantes, já quando estava a meio do processo, foi o livro do Kamel Daoud, Mersault - Contra Investigação, que é um livro que conta a história do Estrangeiro, do Camus, mas do ponto de vista da vítima - é o irmão do árabe que é morto que está a contar a história muitos anos depois. E tem essa semelhança, de ser um livro sobre a vítima, ao contrário do Estrangeiro e por exemplo do Crime e Castigo, que são livros centrados não nas vítimas mas nos homicidas, nas suas motivações, nas suas particularidades.

O Kamel Daoud nesse livro o que faz é centrar o livro na história da vítima e o meu livro, sendo muito diferente, tem esse elo comum: é um livro sobre a vítima, porque que eu quis que fosse um livro não sobre as motivações do homicida mas sobre o percurso [do João Jorge] e [sobre] quem era este rapaz que morreu aos 21 anos. Esse foi um dos livros importantes mas houve outros - como o Angola, Sonho e Pesadelo, do Adolfo Maria, que é um livro de memórias, que também foi muito importante na construção de uma parte deste livro. Depois houve outros livros que de alguma forma tocam este livro e que eu menciono - o Crónica de uma Morte Anunciada [de Gabriel García Márquez], naturalmente. Queria dizer que esse é o caso mais óbvio, porque trata, claro, de uma investigação de um homicídio depois de vários anos do sucedido.

Mas depois há outros que também influenciaram ao entrar neste livro e que não são necessariamente livros de ficção. A par desse do Adolfo Maria, talvez o mais importante tenha sido o ABC do Bê Ó, que é um livro sobre o bairro operário de Luanda escrito pelo Jacques Arlindo dos Santos e que também está dentro deste livro.

Falávamos há pouco de um texto publicado pelo Bruno no jornal Observador. Já passou por vários géneros literários, já explorou várias linguagens. O romance é a procura também de uma liberdade maior?
É, porque no romance cabe tudo, cabem todos os géneros, cabem todas as linguagens. Eu acredito que é no romance que eu me defino enquanto escritor. Eu ponho as minhas fichas todas nos romances. E o romance tem essa vantagem, de ser uma forma muito flexível, muito ampla, e que permite todas estas linguagens. O que também coloca desafios - desde logo o de escolhermos a linguagem mais adequada para a história que queremos contar. 

Sendo isto uma investigação narrada na primeira pessoa, obviamente que isso coloca limites à minha liberdade enquanto narrador - o narrador não pode contar coisas que não presenciou ou que não lhe contaram. A não ser que assuma, como a certa altura faz o narrador, que tem de inventar para chegar à verdade. Tem de mentir para se aproximar da verdade. E essa também é uma boa definição da literatura: mentirmos para tentarmos de alguma forma chegar a alguma verdade.

E aí acho que o romance é o que serve melhor também a minha inquietação estilística, porque eu desconfio sempre quando os escritores dizem que encontraram a sua voz. Acho que quando dizem isso estão a ser preguiçosos, [porque] acho que cada livro tem a sua voz. Se eu escrever um livro sobre um acontecimento passado no século XIX não posso usar a mesma voz - tenho de encontrar a voz em que é possível contar aquela história. Ou então transformo a minha voz no que é mais importante e o livro passa a estar dentro da camisa de forças da voz do autor. E eu quero que a voz sirva para realçar o resto, não chamando a atenção para si mesma. Não se trata de tornar a voz neutra, trata-se de encontrar a voz certa para contar aquela história de forma a que o leitor quando está a ler sinta que aquela história não podia ter sido contada por outras palavras.

Voltando à mentira e à verdade: disse ao Expresso que "o desafio de qualquer escritor é transformar em matéria literária uma realidade que conheça bem". Sente que a maior parte dos autores portugueses da sua geração partilha desta premissa?
Não, isso não sei... não posso falar por eles. Não sei dizer se partilham ou não disso. Eu percebo a ideia da pergunta. (Pausa). Vamos ver: mesmo que um ficcionista escreva sobre filosofia alemã de meados do século XIX, eu parto do princípio que ele domina suficientemente esse assunto para o transformar em matéria literária. Portanto acho que isso é aplicável...

Acho que o sentido da sua pergunta terá mais que ver com essa oposição entre o realismo e escrever sobre outras coisas. Mas acho que é algo que se aplica não só aos escritores mais ligados ao real - ainda que eu tenha dificuldade em não considerar os livros reais, desligá-los da realidade. Mas pronto, no sentido convencional, acredito que é válido para o escritor do fantástico: mesmo que ele esteja a inventar mundos, ele tem de os conhecer, tem de ter pensado bastante sobre esses mundos. E é mais nesse sentido que eu dizia isso. Quando eu falo de uma realidade pode ser a realidade dos livros. Se eu agora quiser escrever sobre cinema, se escrever um livro sobre filmes, eu tenho de conhecer bem essa realidade, de forma a conseguir transformar esse conhecimento e essa realidade num objecto literário que depois já não está dependente do objecto de que se partiu - seja esse objecto um bairro, um filme ou um livro de filosofia. Porque a literatura não tem que ver com esse ponto de partida, tem a ver com o ponto de chegada. O ponto de partida pode ser múltiplo - onde se decide o resultado da literatura é no ponto de chegada. E esse é que é o grande desafio: transformar esse ponto de partida, que até pode aparentemente não ter nada de especial, em matéria literária.

Também escreveu [nas redes sociais, numa publicação pública] que "quando o realismo é preguiçoso, parece muito mais falso do que a fantasia". Fê-lo num comentário sobre o filme Manchester by the Sea. Aplica-o à literatura, ao cinema... e a todas as formas de criação artística?
Claro, é precisamente isso que eu estou a dizer - não é por um filme mostrar um tipo a desentupir uma sanita que é realista. O realismo é uma convenção - são coisas que nós assumimos como sendo realistas. Se eu agora escrever um livro sobre Chelas, as pessoas vão dizer que é realista, mas se eu escrever um livro sobre um multi-milionário que vive numa penthouse em Nova Iorque isso também é realista (risos). Não está é tão próximo da maioria das pessoas mas é tão realista um como o outro.

Nós temos é aquela ideia do neo-realismo e de que aquilo que é realista é aquilo que é o sujo, o feio. E o belo também é realista, o sofisticado também é realista. A propósito desse comentário que fiz, o realizador e argumentista desse filme, o Kenneth [Lonergan], utiliza - pelo menos foi o meu entendimento - uma série de sinalizadores de realismo que são demasiado óbvios. "Agora vou pôr aqui o tipo a tirar a neve com uma pá" - pronto, realismo. Agora está a desentupir. Agora está a falar ao telemóvel e a ligação vai sendo interrompida porque ele vai perdendo a rede. E isto são sinalizadores de realismo, que quando são demasiado óbvios fazem-nos ver o artifício. Porque aquilo é uma construção. Depois não servem o filme - denunciam-no como sendo falso. Ele quer tanto passar por real, esforça-se tanto por passar pelo mundo real - "isto é o mundo real, isto não é o La La Land" - que denuncia o seu próprio artifício.

Nesse sentido eu acho que o La La Land é um filme mais pungente do que o Manchester By The Sea. Mas aquilo que se aplica a um filme aplica-se certamente à literatura - e era nesse sentido que fazia a comparação de um escritor que decida escrever sobre coisas que não têm a ver com a nossa realidade, com o nosso quotidiano. Pode ser uma realidade que ele conhece muito bem e pode ser mais viva e mais pungente - bem, é o exemplo do [Jorge Luís] Borges, que escrevia sobre livros... Não é por eu agora ir escrever sobre a estação de Benfica que eu vou escrever uma coisa mais realista ou mais viva, mais forte, do que alguém que escreve sobre livros ou sobre místicos do século VII.

Há tempos o El País listava os melhores filmes espanhois nos últimos 25 anos e estavam apenas três mulheres e nenhuma nos dez primeiros. E nas redes sociais o Bruno perguntou - não sei se retoricamente, se às pessoas que o seguem - se a literatura continua a ser uma coisa de homens. Devolvo-lhe a pergunta: em Portugal, a literatura ainda é uma coisa de homens?
Essa pergunta na verdade foi uma provocação, porque aquilo foi numa altura em que vi muitas pessoas fazerem contabilidade - contarem pilinhas e pipis. E foi mais nesse sentido. Para mim um bom livro é um bom livro, não me interessa, se foi uma mulher, um homem ou o Espírito Santo que o escreveu. Agora claro que há dinâmicas sociais que estão para além [da escrita] e que condicionam os indivíduos. Porque é que, quando nós pensamos em escritores do século XIX, conseguimos pensar se calhar em 20 escritores homens, assim de repente, e mulheres se calhar... quantas é que conhecemos? Se pensarmos na literatura portuguesa, por exemplo. As mulheres não escreviam? Não sabiam escrever? Porquê? Não se trata apenas de uma escolha individual.

Eu creio que isso hoje na nossa literatura está transformado: creio que há grandes livros nos últimos anos escritos por mulheres. Sei que o [crítico literário do GPS/SÁBADO] Eduardo Pitta há pouco tempo disse isso, que em Portugal a melhor ficção dos últimos anos era escrita por mulheres. O João Barrento também fez um comentário do género - não sei se num livro dele se numa entrevista que deu. Continua a haver alguma desigualdade sobretudo no acesso, mas creio que as coisas hoje estão muito mais equiparadas. As mulheres, as escritoras, cada vez beneficiam mais do mesmo reconhecimento do que os homens - o que, antes, na verdade não acontecia. Por uma série de questões que depois também se podem debater - o facto de haver mais mulheres a ler ficção, não haver tantos homens, todas estas questões não são exclusivas do nosso país, são questões gerais mas que, lá está, são dinâmicas que ultrapassam a questão da escolha individual.

E aí, claro, se nós pensarmos que ao longo da história houve muitas mulheres que não escreveram porque a sociedade não permitia que elas escrevessem... a sociedade não as proíbia de escrever, declaradamente, mas basta pensarmos por exemplo na vida do Tolstoi, que obviamente era um génio... mas se pensarmos na vida familiar que ele tinha, em que a mulher sacrificou tudo - eles tinham um rancho de filhos - pela obra do marido, dificilmente conseguimos imaginar o homem a fazer o mesmo, a cuidar de não sei quantos filhos e dos negócios para a mulher escrever.

Isso é um exemplo de uma tendência - não é um caso isolado, era de facto uma tendência que justifica e que explica porque é que havia tão poucas mulheres a escrever. Não era por decisão. Mesmo em casais de escritores - fala-se sempre no caso do Urbano Tavares Rodrigues e da Maria Judite Carvalho, que era uma grande escritora. Na altura até alguns críticos diziam - claro, naquelas comparações, em que algumas também eram um bocado malévolas - que a grande escritora era ela, não era o marido. E isso havia críticos já na altura que o diziam - se bem que a comparação às vezes fosse mais para dar alfinetadas do que outras coisas. A verdade é que era uma grande escritora que esteve um pouco à sombra do marido. E aí não estamos a falar de alguém que se sacrifica pelo outro, que abdica, mas que no palco, independentemente da qualidade, ficava um pouco atrás.
Mantém a vontade, reiterada em entrevistas anteriores, de não viver exclusivamente da escrita (literária), devido aos constrangimentos que essa situação lhe colocaria (em termos de prazos, por exemplo)?
Mantenho a vontade de não ficar refém da escrita literária. Constrangimentos existem sempre, quer tenhamos um trabalho das 9h às 18h, quer sejamos trabalhadores independentes. O que não quero é que um desses constrangimentos seja a obrigação de entregar um romance de dois em dois anos, por exemplo. Quero ter a liberdade de não escrever mais nenhum romance.

Bruno Vieira Amaral fez do homicídio do primo um romance

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