E se Mamdani fosse político em Portugal?
Não há nada inevitável na vida política. Na forma e no conteúdo, os erros que conduziram à queda de popularidade do PS eram há muito previsíveis e, em grande parte, evitáveis.
Mamdani, AOC ou até Barack Obama jamais seriam eleitos em Portugal. Os aparelhos partidários não o iriam permitir, mesmo que desesperem com a mediocridade presente e com a sua perda de relevância para novas forças políticas, sejam eles partidos, figuras ou movimentos inorgânicos. Alguém tem de o dizer e, por isso, com a habitual franqueza: temos de refundar o funcionamento dos partidos.
Salvar os partidos da sua autodestruição é necessariamente salvar a nossa democracia. Não há uma alternativa boa aos partidos, carregados de vícios que estão e agregadores de interesses como são. Apesar de tudo, eles fornecem ao eleitor uma marca claramente identificável nos seus valores, programa e historial, simplificando o escrutínio que o eleitor teria de fazer caso votasse apenas em pessoas que nem sempre conhece bem. Os partidos organizam as ideias e a ação política não só para fora como também para dentro, criando espaços de reflexão, formação e recrutamento, bem como de mobilização de ativistas motivados por algo bastante maior do que pontuais projetos pessoais.
A cultura portuguesa é, no entanto, especialmente vulnerável aos piores aspetos da cultura partidária. Não tenhamos ilusões: em todos os países, as agremiações sociais e políticas batem continência ao chefe, com pouca escuta e espírito crítico. Em Portugal, isso é agravado por um nacional-porreirismo que, como dizia Saramago, ‘arde muito, mas queima depressa.’ Ninguém se quer chatear, ninguém se responsabiliza e, se a conversa ficar difícil, vai-se mas é fumar um cigarro ou tomar um café.
Tenho-o observado em primeira mão num Partido que já foi o maior do nosso país. Os resultados eleitorais são para celebrar e não para refletir, não vá ser desmotivador. As poucas análises que se fazem são inconsequentemente repetidas ano após ano e não levam a mudanças estruturais. As reuniões ora são meros exercícios burocráticos, ora são caixotes de ressonância onde cada um gosta de se ouvir. Dizemos menos o que pensamos e mais o que achamos que os outros querem ouvir.
Não há nada inevitável na vida política. Na forma e no conteúdo, os erros que conduziram à queda de popularidade do PS eram há muito previsíveis e, em grande parte, evitáveis. Termos conseguido ganhar tantas vezes e governar tanto tempo é um milagre que só se explica pela qualidade das nossas políticas e pelo carisma dos nossos primeiros-ministros.
Todos o sabem e todos se revoltam, mas nada muda. Seguramente, esta não é uma realidade unicamente do PS. É uma espécie de anestesia, administrada por um sistema onde as oportunidades políticas são definidas por listas fechadas habilmente constituídas entre os caciques e as tribos leais dos líderes. Com as atuais regras do jogo a lealdade exige demasiadas vezes a morte da frontalidade, da consciência livre e do debate de ideias. Resta pouco espaço para a inteligência ou para o trabalho. Há outras virtudes a remunerar.
Quem faz esta crítica aos partidos costuma seguir-lhe com uma necessidade de abrir os partidos à sociedade civil. Achando-a melhor que a “plebe militante”, apregoam eleições primárias para escolher lideranças, esperando que quem vem de fora venha validar a sua tendência interna. Os partidos não precisam de somar filósofos-rei aos herdeiros políticos, que já se autoproclamam iluminados. Precisam de humildade, de comunidade e de liberdade. Precisam de se abrir, mas sem desvalorizar quem dá a cara por eles todos os dias.
Refundar o modo de funcionamento dos partidos implica acabar com a “matrioska” de indicações, que vão desde a mais pequena grupelha até à lista final, num somatório de filtros, portões e perceções que vão deixando muita gente boa de fora. Temos de acabar com um sistema de listas que não forma equipas, mas, sim, ajuntamentos de conveniência. Os dirigentes nacionais para uma determinada área deviam ser escolhidos livre e individualmente, pela visão, credibilidade e projeto que aportam e não por lhes ter calhado essa “fava” entre as nomeações do chefe do momento. Só assim poderão os militantes exigir contas ao trabalho que cada dirigente fez ou não fez. Ter menos cargos para “negociar” também permite escolher líderes mais pelas suas qualidades do que pelos lugares que oferece.
Contudo, não bastará que tenhamos eleições diretas e uninominais para as funções de liderança. Sem recursos nada se faz e a participação política continua a ser reprodutora da desigualdade de meios de cada um. Os partidos hoje gastam milhões de euros de subvenções públicas sem que, para isso, sejam obrigados a investir em melhores condições de trabalho para os seus eleitos e as suas secções. Um militante que tenha uma ideia diferente sobre como fazer política não tem qualquer hipótese de a ver implementada. É preciso devolver aos próprios militantes não só a palavra sobre como se gastam as suas quotas, mas, sobretudo, o poder de inovar na ação política, criando um Orçamento Participativo dentro dos partidos.
Não é difícil perceber que as eleições de Mamdani, AOC e Obama não se deveram ao súbito reconhecimento por parte das elites políticas americanas do seu imenso talento. Mesmo depois de vencer as primárias, os maiores dirigentes do partido democrata, incluindo o seu líder parlamentar, esperaram até ao último momento possível para apoiar o novo mayor de Nova Iorque. Em 2008, 2018 e 2025, estes três líderes venceram porque tiveram a coragem e a oportunidade de se apresentar, montando programas, ações e equipas que se revelaram sintonizados com a energia, convicção e autenticidade que as pessoas queriam.
Há muitas lições a tirar destas improváveis vitórias e esta é, sem dúvida, uma. Se é certo que as pessoas querem diferentes coisas dos seus líderes em diferentes momentos, a estrutura com que um sistema político escolhe os seus líderes determina se temos a capacidade de nos renovar ou se vamos acabar a cheirar a mofo. O sistema político americano tem muitos defeitos, mas encontra neste aspeto uma semente inesgotável de esperança. Aqui, por Portugal, podia ser ainda uma espécie exótica, mas, para uma democracia que definha, seria a nossa melhor hipótese de um novo amanhecer.
E se Mamdani fosse político em Portugal?
Não há nada inevitável na vida política. Na forma e no conteúdo, os erros que conduziram à queda de popularidade do PS eram há muito previsíveis e, em grande parte, evitáveis.
Não se fazem omeletes sem ovos
Álvaro Almeida, diretor executivo do SNS, terá dito, numa reunião com administradores hospitalares, que mesmo atrasando consultas e cirurgias, a ordem era para cortar.
O ilusionismo orçamental
O problema começa logo no cenário macroeconómico que o Governo traça. Desde o crescimento do PIB ao défice, não é só o Governo da AD que desmente o otimista programa eleitoral da AD.
Tirem as mãos das nossas pensões
Até pode ser bom obrigar os políticos a fazerem reformas, ainda para mais com a instabilidade política em que vivemos. E as ideias vêm lá de fora, e como o que vem lá de fora costuma ter muita consideração, pode ser que tenha também muita razão.
Com ambição e sem ilusões
Ventura pode ter tido a sua imagem em cartazes pelo país fora que não engana os eleitores. Os portugueses demonstraram distinguir bem os atos eleitorais.
Edições do Dia
Boas leituras!