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João Carlos Barradas
27.12.2025

Não tereis paz na Ucrânia

Não tereis, pois, paz na Ucrânia enquanto Putin e os seus fizerem valer a vontade de poder e a obsessão de império que consume a Rússia.

Espera-nos em 2026 o fim dos tempos, como sempre, e a certeza de que é ilusória qualquer esperança de paz na frente de guerra russo-ucraniana.

Submeter a Ucrânia, reverter as perdas provocadas ao domínio russo pela dissolução da União Soviética, em 1991, através de conquistas territoriais e controlo político, impor esferas de influência reconhecidas internacionalmente, foram sempre ambições expressas por Vladimir Putin.

Actas oficiais norte-americanas de encontros e conversas telefónicas de Putin e George Walker Bush entre 2001 e 2008, divulgadas esta semana, são prova documental das ambições do antigo coronel do KGB que sucederia a Boris Ieltsin em Dezembro de 1999, após o presidente russo renunciar à presidência.

Algo inaudito

No primeiro encontro com Bush na Eslovénia, em Junho de 2001, Putin advogaria a cooperação com Washington na luta no Afeganistão contra os «Taliban» e a «Al Qaeda» que em Setembro viria a concretizar o maior ataque terrorista de sempre contra os Estados Unidos.

Nas conversações no Castelo de Brdo, Putin – eleito em Março de 2000 – e Bush – vencedor da disputa com John Kerry, em Novembro desse ano –abordariam a questão do eventual alargamento da NATO, de acordo com os documentos disponibilizados pelo «National Security Archive», instituição não-governamental criada em 1985, sedeada na George Washington University.

Admitindo a possibilidade de uma aliança com os Estados Unidos, Putin lamentaria, contudo, sentir-se «excluído da NATO» e contestaria um eventual alargamento da organização que, após a reunificação da Alemanha, em 1990, incorporara em 1999, a República Checa, a Polónia e a Hungria.

«Os russos abandonaram milhares de quilómetros quadrados de território voluntariamente. Algo inaudito. A Ucrânia, parte da Rússia durante séculos, abandonada. O Cáucaso também», constataria o líder do Kremlin, mas, ainda assim, Putin reiteraria que os «interesses da Rússia estão alinhados com o Ocidente».

Após esse primeiro encontro Bush declarou considerar Putin um estadista «muito directo e confiável».

O estrangeiro próximo

Já em Setembro de 2005, em reunião na Casa Branca, ambos os presidentes manifestaram concordância quanto à urgência de pôr termo aos programas nucleares militares do Irão e da Coreia do Norte e ignoraram, segundo as actas, a questão espinhosa da NATO que no ano anterior passara a integrar Lituânia, Letónia, Estónia, Roménia, Bulgária, Eslováquia e Eslovénia.

Em Abril desse ano, no entanto, Putin classificara o desmembramento da URSS como «a maior catástrofe geopolítica do século» e, conforme indicam os editores do centro de investigação de Washington, as negociações tornaram-se cada vez mais difíceis.

As divergências acentuaram-se devido a projectos de defesa antimísseis da administração republicana – questão abordada na cimeira de Moscovo de Maio de 2002 sobre armamento estratégico – e à crescente desconfiança de Putin quanto às intenções dos Estados Unidos em relação ao «estrangeiro próximo», os 14 estados tornados independentes na sequência da dissolução da União Soviética.

Os dois chefes de estado evitaram, todavia, confrontos públicos nas 28 reuniões oficiais e encontros informais que mantiveram até Bush ceder a presidência a Barack Obama em 2009.

A condenação da invasão russa da Geórgia em Agosto de 2008 ocorreu já durante o interregno presidencial de Dmitri Medvedev, sendo Putin primeiro-ministro, mas algo ficara muito claro no derradeiro encontro.

Ao verem-se na sua residência de veraneio de Sotchi, em Abril de 2008, após a Cimeira da NATO em Bucareste, Putin fora muito explícito ao dizer a Bush que a entrada da Geórgia na aliança ocidental em nada contribuiria para resolver o conflito entre Tbilissi e as regiões separatistas da Abcázia e Ossétia do Sul.

A Rússia ver-se-ia ainda obrigada a responder à ameaça de «novas bases militares e sistemas de armamento próximas das nossas fronteiras».

O mesmo valia quanto à eventual adesão da Ucrânia à NATO que Bush defendera.

Para Putin a entrada da Ucrânia numa aliança militar ocidental era inaceitável e redundaria, por sua vez, num «conflito de longa duração» entre a Rússia e a NATO em torno de um «país artificial criado na era soviética».

O selo do destino

Em Março de 2014 a invasão e anexação da Crimeia selaram um destino de guerra anunciada.

Depois, em Fevereiro de 2002, ao anunciar uma «operação militar especial» para pôr termo ao genocídio em Lugansk e Donetsk e proceder à «desmilitarização e desnazificação da Ucrânia», Putin expressou o sentimento íntimo que há muito o movia.

O enfraquecimento da URSS a partir da década de 1980 e a sua desagregação representavam «uma boa lição plena de actualidade», referiu Putin no discurso de guerra.

«A paralisia do poder, da vontade, é o primeiro passo para a degradação total da vontade e a extinção», disse, então, pelo que acima de tudo importa o ímpeto da conquista.

Não tereis, pois, paz na Ucrânia enquanto Putin e os seus fizerem valer a vontade de poder e a obsessão de império que consume a Rússia.

Texto escrito segundo o Acordo Ortográfico de 1945

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