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Miguel Costa Matos
Miguel Costa Matos Economista e deputado do PS
23 de dezembro de 2025 às 07:12

A ilusão do Ocidente

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Edição de 22 a 28 de dezembro

A ameaça russa já começa a ter repercussões concretas no terreno. É disso exemplo as constantes e descaradas incursões de aeronaves russas, principalmente drones, em território europeu.

A ordem mundial não está a desmoronar-se. Ela já acabou e nós ainda não temos a coragem de o admitir. Em lado algum é isso mais claro do que na Europa, que já foi palco e raiz de tamanha guerra e sofrimento ao longo dos séculos dos séculos. A Administração americana faz do Velho Continente o seu recreio: para organizar a paz em torno de e intrometer-se nas democracias europeias, sociais e partidários que suportem a sua visão do mundo. Enquanto isso, retraem as garantias de segurança. Não é só a presença de militares americanos na Europa do Leste que se . É o ensurdecedor silêncio de um aliado perante de Putin invadir.

Essa ameaça já começa a ter repercussões concretas no terreno. É disso exemplo as constantes e descaradas , principalmente drones, em território europeu, com consequências diretas, por exemplo, no funcionamento dos aeroportos. Já teve, claramente, impactos económicos, na forma de uma crise inflacionista, que trouxe grandes custos sociais e políticos a governos de várias cores. Nenhum custo será maior do que a evidência de que, além das debilidades económicas tão bem diagnosticadas por Mario Draghi, a Europa está dividida, sem agência nem rumo, num mundo crescentemente multipolar.

A primeira pergunta que devemos colocar é de que nos vale a aliança atlântica aos dias de hoje. Ela tem de servir para mais do que obrigar a Europa à compra de material militar ou como uma promessa de defesa coletiva apenas entre europeus. No curto prazo, precisamos ainda da intelligence norte-americana e de peças para o material armado que já temos. Todavia, fica pouco claro que mais podemos regatear a uma Administração que nos é abertamente hostil. Nessa aliança em desmoronamento, faltará saber o que se fará se, por exemplo, a , for o próximo. Honraremos o artigo 5.º ou vai cada país ter uma noção diferente dessa obrigação?

A segunda questão a refletir é que paz queremos. A história um dia rezará de como a Rússia pós-soviética começou a sua ofensiva em 2008 na Geórgia, prosseguiu-a na Crimeia em 2014 e consolidou-a na Ucrânia em 2022. Tal como em 1938, condenaremos os apaziguadores que acreditavam em ceder território a troco de um cessar-fogo, em sacrificar povos para uma paz fácil num território distante ao qual se pode aplicar uma lógica de esferas de influência. Ao contrário de Chamberlain, os lideres de agora não terão a seu favor o argumento de que compraram tempo para capacitar a Europa para a guerra. Estes últimos 3 anos foram absolutamente desperdiçados, nem se encomendando o que demora tempo a construir nem criando capacidade industrial para cá os produzir.

O terceiro desafio para a Europa está em como financiar a guerra. E não haja dúvidas: nós estamos já em guerra. Ao longo da história, muitas foram as maneiras de o fazer mas nenhuma foi tão contraproducente como fazê-lo à custa dos cidadãos, através de impostos mais altos ou de serviços públicos piores. Há pelo menos 50 anos que os estrategas militares sabem que a batalha mais importante não são com soldados. São os “hearts and minds” (corações e cabeças) das pessoas. Deve ser por isso que, nos próximos anos, enquanto despejamos dinheiro à barda em armamento, a Europa se prepara para impor, de uma só vez, o fim do PRR, cortes na Política de Coesão, cortes na Política Agrícola Comum e uma nova dose de austeridade nacional, imposta pelas novas regras orçamentais. Por muito bons que sejam os líderes políticos, não há tecido social que sobreviva a isto.

O quarto e último eixo que a Europa não pode ignorar é o que fazer com os outros BRICS. Este conjunto de países, que mesmo após a invasão da Ucrânia nunca quebrou ligações com o Kremlin, tem, nos últimos anos, investido (literalmente) forte e feio no reforço das suas ligações diplomáticas, usando o dinheiro e a sua capacidade de construção como isco para nações mais pequenos e indefesas. Hoje a China e a Índia também já não são apenas operários numa fábrica global a competir pelo baixo preço. São criadores de ciência e até de tecnologias de produção, do qual Portugal e a Europa não pode ficar de fora. Num mundo multipolar, o truque não é tanto em ir exigindo alinhamento geopolítico, quando este pode ser múltiplo e circunstancial. Também não é de despejar dinheiro em feiras sem feirantes. As parcerias que faremos no mundo devem ser baseadas profundamente em ouvir. Não vale a pena também querermos armar uma guerra com todos ao mesmo tempo.

A Europa não precisa de mais discursos comovidos. Precisa de visão, coragem e investimento: não só militar, mas social, industrial e estratégico. Se queremos garantir a paz, temos de nos preparar para defendê-la com meios próprios, firmes nas nossas alianças mas senhores do nosso destino. E se queremos respeito no mundo multipolar, teremos de o conquistar não com apelos vazios, mas com exemplos concretos. Essa é a Europa que faz falta e é por ela que vale a pena lutar.

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