Ricardo Araújo Pereira: "Os idiotas têm direito a fazer interpretações absurdas. Não têm o direito de as impor"

'Os idiotas têm direito a fazer interpretações absurdas. Não têm o direito de as impor'
Marco Alves 20 de setembro de 2020

Começa este domingo a 2ª temporada de "Isto É Gozar Com Quem Trabalha" e Ricardo Araújo Pereira conta à SÁBADO como fazer humor com a pandemia, quem recusou o convite para a 1ª temporada e quem não vai ser de certeza convidado.

Quando Isto É Gozar Com Quem Trabalha se estreou na SIC, a 1 de março, ainda não havia nenhum caso positivo de Covid-19 em Portugal. Mas no dia seguinte apareceu o primeiro e o que se seguiu foram meses de confinamento, de medo e de apreensão. Esta entrevista - feita em vários emails - começa precisamente sobre essa coisa de fazer humor num mundo que de repente se tornou um filme de terror.

Fazer humor com a pandemia ou num contexto de pandemia – e isso inclui um cenário de mortes - foi o mais difícil até agora na sua carreira de humorista? Que reflexões fez sobre isso?
Em alturas como esta temos, por um lado, a sensação de que o riso é uma resposta que desrespeita a gravidade do momento e, por outro, a suspeita de que o riso talvez seja um modo imprescindível de ajudar a suportar a gravidade do momento. Não sei qual delas se sobrepõe à outra, e o mais provável é que isso varie de pessoa para pessoa. Logo no início do Othello, o pai da Desdémona queixa-se às autoridades de que o mouro lhe roubou a filha. O duque faz uma sugestão célebre para que ele lide com o problema com outra disposição. Diz ele: "O roubado que sorri rouba qualquer coisa ao ladrão." Acho que todos percebemos bem essa espécie de consolação, mas também não deixamos de sentir que talvez não seja a consolação mais satisfatória. Acho que o que o humor tem para oferecer é muito parecido: uma consolação insuficiente, frágil e fugaz. Não é muito, mas é o que há.

Equacionaram suspender o programa?
Sim. O Daniel Oliveira pôs essa hipótese e deixou a decisão ao nosso critério.

Sente que fazer o programa sem público à frente foi muito mais difícil?
Claro. É como fazer mímica às escuras. A presença do público não é um capricho. A comédia tem uma componente de eficácia muito óbvia. Se ninguém chorar durante uma tragédia, isso não diz nada da qualidade da tragédia. Mas se ninguém rir numa comédia, em princípio alguma coisa não está bem. Todo o jargão da comédia, sobretudo em inglês, aponta para uma lógica de faena. De quem não provoca gargalhadas diz-se que morreu no palco. De quem faz a casa vir abaixo diz-se que matou. Isto é um tipo sozinho contra uma fera de várias cabeças. Se a fera não comparece, não há mérito nenhum no tipo que a enfrenta sozinho.

O programa (como outros anteriores) está assente numa base instável (ou não): na primeira parte faz sátira de políticos que depois são entrevistados na segunda parte, quase sempre em ambiente de picardia bem-disposta. É fundamental ter esta segunda parte?
Em princípio, nada num programa de entretenimento é fundamental. Mas o programa tem duas partes bem definidas em que é muito claro o que está em causa: na primeira, dizemos o que nos apetece. Na segunda, é óbvio que o tom muda. A nossa regra é: não se convida uma pessoa para a enxovalhar. Aliás, qualquer programa deste tipo, em todo o lado, funciona assim – até porque, de outro modo, as pessoas deixam de ir… Provocações, no entanto, são aceitáveis. E a entrevista resulta tanto melhor quanto mais o convidado me provocar de volta. A conversa com o deputado João Cotrim de Figueiredo, da Iniciativa Liberal, é um bom exemplo.

Alguém dizia (terá sido o Kissinger?) que tomar o pequeno-almoço com o inimigo torna mais improvável que à tarde lhe declaremos guerra. Essa segunda parte do seu programa não lhe tira liberdade? Não torna a sua sátira diferente do que poderia ser? Não a torna mesmo menos corrosiva? Porque é mais difícil ser cruel com o gajo porreiro com quem tomámos o pequeno-almoço, concorda?
Não. Aliás, não concordo com quase nada do que disse. Os convidados não vão ao programa tomar o pequeno-almoço, vão ser entrevistados. E trata-se uma entrevista política: eles não vão responder a perguntas sobre o que gostam de fazer nos tempos livres, ou sobre o que queriam ser quando eram miúdos. Se entrevistar um político nos torna menos exigentes com ele, receio pelo jornalismo. Os jornalistas entrevistam políticos a toda a hora. Se passam a ser mais benevolentes com eles por causa disso, é muito preocupante.

Se não estou em erro, a ministra da saúde e a diretora geral da saúde não foram ao programa - e foram duas figuras fundamentais mediaticamente neste semestre. Não foram por falta de convite, ou porque recusaram
Foram convidadas, claro. Várias vezes. Alegaram não ser o momento oportuno,

Em que situações acredita que a sátira política pode realmente fazer alguma diferença? Num dos episódios do podcast do Malcolm Gladwell, sobre a sátira política, ele dá exemplos de como a sátira política pode reforçar as ideias e as convicções que o público já tinha, o que de certa forma a torna muitas vezes inútil.
Depende do que chama fazer diferença. A discussão sobre sátira política é quase sempre dominada pelas pessoas que se interessam mais por política do que por sátira. Essas pessoas, às quais parece escapar o facto importante de, na expressão "sátira política", sátira ser substantivo e política adjectivo, não só estão obcecadas com o poder político da sátira como têm tendência para acreditar que o humor é mais poderoso do que na verdade é. Só para dar um exemplo (posso dar vários outros): em Setembro de 2004, o comentador conservador Bill O’Reilly convidou Jon Stewart para o seu programa e, receando que o Daily Show pudesse "fazer diferença" por causa da sátira constante ao presidente, disse-lhe: "Sabes o que é assustador? Tu vais ter, de facto, influência nestas eleições."

Um mês e meio depois, George W. Bush seria reeleito, obtendo mais dez milhões de votos do que na sua primeira eleição. Se o Daily Show fez diferença, não se notou muito.

Os humoristas, talvez por causa deste tipo de ocorrência, têm uma ideia bastante diferente do putativo poder do humor. Numa entrevista à Rolling Stone, em 2011, Jon Stewart disse: "Toda a gente sobrestima o poder da sátira. Uma vez, alguém disse ao Peter Cook que os satiristas mais poderosos da história eram os artistas dos cabarés, na Berlim dos anos 30. E o Peter Cook disse: ‘Sim, eles deram cá uma ensinadela ao Hitler, não foi?’" Cinco anos antes, numa entrevista conjunta à mesma revista, Stephen Colbert e Jon Stewart disseram: "Isto não significa que o que nós fazemos seja inútil. É difícil, as pessoas gostam e é óptimo. Mas isso não quer dizer que tenha um efeito político. Ou uma agenda de mudança social. Nós não somos guerreiros no exército de alguém."

Por outro lado, há vários estudos que recomendam alguma prudência quando se trata de avaliar o poder do humor. Só para dar alguns exemplos, o trabalho de Robin L. Nabi, Emily Moyer-Gusé e Sahara Byrne formula o conceito de "discounting cue", que basicamente significa que, por mais persuasivo que o discurso humorístico seja, o público dá, por assim dizer, um desconto à sua credibilidade, e não lhe atribui o mesmo peso que atribuiria ao discurso "sério". Além dos estudos que lembram que a audiência destes programas já está potencialmente identificada com as ideias dos autores, o que quer dizer que o humorista estará a fazer aquilo a que se chama "pregar para convertidos". Há ainda outros estudos que constatam que o modo como a comédia é recebida escapa ao controlo do humorista. Um caso evidente, de que o Malcolm Gladwell também fala, é o da personagem do Archie Bunker, na série All in the Family.

Algumas pessoas riem da sátira ao discurso ignorante e racista, outras riem porque o interpretam literalmente e concordam com ele. Certos críticos precipitam-se para concluir que personagens como Archie Bunker não devem existir, precisamente porque reforçam as convicções de quem não percebe que aquele discurso é irónico. Parece-me uma ideia perigosa, sobretudo porque, para todos os efeitos, entrega aos idiotas que não compreendem ironia o poder de definir o que pode e não pode ser dito. Em última análise, é a deficiente capacidade de interpretação dos idiotas que passa a decidir que discurso é aceitável.

Quando é que uma sátira política é inútil? Quando se foca em aspetos superficiais, como a maneira de falar ou de vestir de um político? Pensa que muitas vezes a sua sátira cai nessa superficialidade?
Do meu ponto de vista, a sátira política é inútil quando não faz rir a plateia. Imagino que seja muito agradável receber do público um aplauso, ou um respeitoso aceno de cabeça em sinal de aprovação. Não é a nossa ambição. Nós trabalhamos para ouvir gargalhadas. Enfim, cada maluco com a sua mania. De resto, creio que não falamos muito da maneira de vestir dos políticos. Da maneira de falar, sim – mas discordo que esse seja um aspecto superficial. Não rejeito, no entanto, que o nosso olhar se detenha em aspectos superficiais. O programa consiste, basicamente, numa pessoa sentada a uma secretária a resmungar – na maior parte das vezes acerca de injecções de capital ou comissões parlamentares de inquérito, que não são propriamente temas clássicos de comédia. Alguma superficialidade é muito bem-vinda, para desenjoar. Portanto, quando o primeiro-ministro aparece em público de braguilha aberta, em princípio a gente aproveita.

Para si, fazer sátira política a André Ventura é apenas um exercício de humor, ou é também uma batalha ideológica?
É um exercício de humor. Quem tem uma batalha ideológica com André Ventura são os seus adversários políticos. Nós fazemos piadas sobre André Ventura.

A piada do Hitlerilas gerou consenso na equipa do programa?
Não gerou apenas consenso, gerou unanimidade. Passou no nosso apertado crivo ético e moral, que consiste na seguinte pergunta: tem graça? Se achamos que sim, fica; se achamos que não, sai.

Sentiram que era um passo arriscado ou que podia gerar interpretações contrárias às vossas? Porque estão a satirizar uma pessoa chamando-a de larilas ao mesmo tempo que lhe dizem que não tem mal nenhum em ser larilas. É uma piada complicada. Tiveram noção disso?
Todo o discurso não literal é, para usar a sua expressão, complicado. Ainda assim, como fica demonstrado na sua pergunta, parece-me que o texto era suficientemente claro: não há mal nenhum em ser efeminado – mas quando uma pessoa efeminada acusa os outros de serem efeminados, isso tem graça. Também não há mal nenhum em ser apreciador de bifanas. Mas se eu manifestar desprezo pelos apreciadores de bifanas enquanto engulo bifanas, é natural que isso dê alguma vontade de rir. De resto, como é evidente, toda a gente tem direito a fazer a sua interpretação. Imagine que um leitor d’ Os Maias, tendo lido ou não o livro (direito que também lhe assiste), conclui que se trata de uma obra desinteressante sobre a civilização maia. Percebemos que se trata de uma pessoa com algumas dificuldades de interpretação de texto, mas reconhecemos o seu direito a ser idiota. Se o idiota disser que se opõe a que uma obra desinteressante sobre a civilização maia integre o programa de português do 10º ano, continuamos a reconhecer-lhe o direito à idiotice. Se, com base nesses argumentos, ele conseguir que o livro seja retirado do programa, isso já me parece preocupante. Os idiotas têm direito a fazer interpretações absurdas. Não têm o direito de impor a sua interpretação absurda aos outros.

Respondendo à sua pergunta: tivemos noção de que a piada poderia ser considerada ofensiva, até porque tudo tem potencial para ser considerado ofensivo. Mas estava convencido de que as quatro letras "ilas" eram menos problemáticas do que as seis letras que as precedem.

André Ventura já o desafiou várias vezes para o convidarem a ir ao programa. Descarta essa hipótese?
Sim, descarto. Quem quer convidar o Ventura deve poder fazê-lo. Quem não quer também está no seu direito. Liberdade é isso: eu não impeço os outros de convidarem quem querem; os outros não me obrigam a convidar quem eu não quero. No meu tempo isto era incontroverso.

Porque é que descarta?
Porque o Ventura não se enquadra no programa. Ele tem dito várias vezes que é contra o sistema, os partidos do sistema, e que quer destruir o sistema. É uma aversão súbita, porque ainda há pouco tempo ele militava no maior partido do sistema, mas está bastante arreigada, como costuma acontecer com as paixões recentes. Ele também tem referido que eu sou um humorista do sistema. Está certíssimo. O sistema chama-se democracia e tem muitos defeitos, mas eu não conheço outro melhor. Portanto, receio que ele até se sentisse mal no programa. Ele já prometeu que, se ganhar as eleições, "ofender polícias, magistrados ou guardas prisionais vai dar mesmo prisão. E o Twitter deixará de ser a bandalheira que é". Ora, bandalheira é o que não falta no programa. E já devemos ter ofendido pelo menos um magistrado, que até nos ameaçou com um processo. Não é ambiente para uma delicada flor como André Ventura. 

Por que razão quererá ele ir tanto ao programa?
Julgo que tem a ver com a sua elevada estatura como homem de Estado. Quase todos os grandes líderes da História andaram a pedinchar para ir a programas de entretenimento, como sabe.

Esta é a segunda vez em que está declaradamente em oposição a um partido. O primeiro foi com o PNR. O que tem de diferente o Chega?
Nem num caso nem no outro estive declaradamente em oposição a um partido. Em ambos os casos, fizemos piadas sobre esse partido, e foi tudo. Acontece que é o tipo de partido que reage mal a piadas, o que não é surpreendente.

Sempre foi processado pelo juiz Neto de Moura?
Até agora, nada. Parece que foi apenas uma manobra de intimidação. Não foi muito bem sucedida.

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