Mentiras sobre máscaras, sobre vírus, o "inigualável" Trump, as mezinhas da medicina chinesa e a teoria de que tudo não passa de uma arma biológica. São muitas as informações erradas sobre a covid-19. Para derrubar mitos e fake news, o físico Carlos Fiolhais e o bioquímico David Marçal juntaram-se mais uma vez para escrever um livro. Apanhados Pelo Vírus, da Gradiva, junta factos e mitos sobre a pandemia que começou em Wuhan, na China.
Os autores reforçam ainda que as sequelas da covid-19 ainda não são totalmente conhecidas e que "são mais uma razão para travarmos a transmissão do vírus". E acrescentam: "a infeção poderá ter consequências para além do período agudo da doença. Isto não é uma gripe!"
Quanto ao Natal, é melhor termos noção que não será como antes. "Para termos um Natal de 2021 com todos, é bem possível que tenhamos de ter o Natal de 2020 só com alguns. O vírus transmite-se entre os humanos, pelo que temos mesmo de diminuir os contactos entre as pessoas se queremos que ele não entre nós: se nos aproximarmos de alguém devemos usar sempre máscara. Além disso, higienizar locais, lavar as mãos com frequência, preferir sempre espaços abertos a fechados e ventilar bem os espaços fechados."
O que mais vos surpreendeu neste vírus?
Carlos Fiolhais (CF) - A facilidade de contágio, que é ajudado pela transmissão viral por pessoas assintomáticas. Essa característica ajudou a transmissão da doença por pessoas que dela não tinham consciência. Contribuiu para o espalhamento rápido da COVID-19 a uma escala global e continua hoje a dificultar a luta contra ela. Também é surpreendente o conjunto de sequelas que estão a aparecer em pessoas que deixaram de testar positivo: é um assunto que requer mais investigação.
Previa-se que acontecesse uma pandemia, esperavam que fosse tão cedo? Porquê?
David Marçal (DM) - É bem sabido que os vírus podem "saltar" de um hospedeiro animal para os seres humanos. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o vírus da SIDA. Mas esses acontecimentos são como os terramotos: não se sabe quando vão acontecer, mas devemos preparar-nos o melhor possível para essas eventualidades. O problema maior não ocorre apenas quando um vírus passa de um animal para humano, mas quando ele se transmite entre humanos.
Quando começaram a ler as primeiras notícias de Wuhan, ficaram assustados com a pneumonia desconhecida?
CF- De facto, só ficámos assustados quando o número de vítimas mortais se multiplicou na Itália e os hospitais deixarem de conseguir responder a todos os doentes que necessitavam de cuidados intensivos.
Explicam que o desígnio do vírus é "multiplicar-se e para esse desígnio precisa de um hospedeiro." Este vírus tem tanto sucesso porque tem uma taxa de mortalidade baixa? Ou seja, não mata rapidamente o seu hospedeiro?
DM- A mortalidade da COVID-19 é de cerca de 30 óbitos por 100 000 habitantes. Não é nada baixa, embora haja doenças com mortalidades mais elevadas. Outro número importante é o da letalidade: em 100 pessoas diagnosticadas com a covid-19 morrem duas. Esse é um valor médio. Mas o risco de morte é agravado com a idade... O sucesso do vírus depende de vários factores, como a transmissão por pessoas infectadas sem sintomas.
Já surgiram várias teorias sobre o vírus sobreviver em superfícies. Temos de nos preocupar ou não?
DM - Há estudos em que encontraram o material genético do vírus em diversos tipos de superfícies, nalguns casos várias horas após a contaminação. Mas, em todos os casos, a sua quantidade diminui rapidamente. A transmissão através de superfícies é possível, mas convém não entrar em pânico: basta lavar bem as mãos.
Existe alguma incerteza sobre o modo como o vírus irá afetar cada pessoa. Temos idosos de 100 anos a recuperar e alguns jovens a morrer. Que ilações podemos tirar?
DM - A letalidade é bastante superior em pessoas mais velhas. Mas em todas as faixas etárias há pessoas que morrem e pessoas que recuperam. A estatística é muito importante: não podemos tirar conclusões a partir de um ou dois casos isolados.
As sequelas ainda estão a ser estudadas: Há quem deixe de andar, quem tenha dificuldades cognitivas, etc. Que conclusões podemos tirar?
DM - As sequelas de longo prazo da covid-19 são um tema sobre o qual ainda há muita incerteza. Sabemos que elas ocorrem em bastantes casos, mas precisamos de saber mais. Elas são mais uma razão para travarmos a transmissão do vírus, pois a infeção poderá ter consequências para além do período agudo da doença. Isto não é uma gripe!
A TRANSMISSÃO ATRAVÉS DE SUPERFÍCEIS É POSSÍVEL, MAS CONVÉM NÃO ENTRAR EM PÂNICO: BASTA LAVAR BEM AS MÃOS
O maior desafio do controlo desta pandemia são os assintomáticos?
DM - Porque nos dias anteriores ao aparecimento de sintomas os infetados assintomáticos têm cargas virais muito elevadas e são altamente contagiosos. Mas não sabem sequer que estão infetados…
Portugal reagiu a tempo?
CF - Fomos todos apanhados de surpresa pelo vírus. Nós tivemos a vantagem de ver o que se passava de grave noutros países. Controlámos bem a primeira vaga. Estamos a viver a segunda, é cedo para fazer juízos, mas parece claro que nos podíamos ter preparado melhor. Agora que a vacina se aproxima devíamos ter rapidamente planos de vacinação.
Vamos ter outra COVID?
DM - Nos últimos 20 anos tivemos três epidemias causadas por coronavírus (SARS, MERS e agora COVID-19). É provável que se repitam episódios semelhantes. As mutações de microrganismos são imprevisíveis. Mas devíamos construir mecanismos de cooperação internacional que nos permitam fazer tocar os sinos a rebate o mais cedo que for possível. E desde essa altura, pensar logo em vacinas, tirando partido de tecnologia já desenvolvidas e que podem ser rapidamente aplicadas numa nova vacina.
As pandemias serão a nossa nova realidade?
CF - De facto, se olharmos para a história, ela está cheia de pandemias: a peste negra nos tempos antigos e medievais, mas também a varíola, a cólera, a febre-amarela, a poliomielite, etc. Com todos os avanços da ciência, esta é, sem dúvida, a melhor época para viver. Sequenciámos o vírus rapidamente e com base nessa informação preparámos testes e vacinas. E no futuro vamos saber mais: vamos aprender com os nossos erros e com os nossos sucessos.
Um dos erros mais apontados à DGS é falta de clareza na comunicação. O que devia ter sido feito?
CF - É difícil para as autoridades de saúde trabalharem numa situação nova, na qual há forte pressão social e política. Podia-se, no meu entender, ter feito melhor incrementando a relação com os cientistas, diminuindo a frequência da informação, não dando certezas quando há incertezas, preparar informação adequada a vários tipos de público, etc.
No livro, dedicam um capítulo à "reviravolta" da máscara. O que fazem afinal as máscaras? Porquê a confusão inicial?
DM - As máscaras reduzem muito a transmissão através da tosse ou espirros. Também podem ajudar a reduzir a transmissão pelo ar, ou seja, através de partículas muito pequenas que podem ficar em suspensão durante horas em ambientes fechados. A Organização Mundial de Saúde foi demasiado e desnecessariamente perentória ao declarar a sua inutilidade. Era plausível que as máscaras ajudassem, tendo em conta a experiência com outros vírus respiratórios. Claro que havia o receio que as máscaras faltassem aos profissionais de saúde. Mas isso poderia ter sido assumido, recomendando à população que apenas usasse máscaras de pano, como mais tarde veio a acontecer.
A MENTIRA MAIS PERIGOSA FOI QUANDO TRUMP DISSE QUE INGERIR DESINFETANTE AJUDAVA A CURAR [COVID.19]
Qual é o maior mito da covid-19?
CF - Há tantos mitos disparatados – desde dizer que é uma doença semelhante a uma gripe, até dizer que é uma arma biológica inventada pelos chineses, ou que resultou do uso de radiações 5G, ou que só certos grupos étnicos é que ficam infetados, ou que se cura com mezinhas – que é difícil responder. Mas a mentira mais perigosa foi quando Trump disse que ingerir desinfetante ajudava a curar. Há sempre gente que faz o que os presidentes dizem…
Muitos começaram a dizer que se tratava de uma arma biológica da China. De onde vem esta teoria?
CF - Vem do facto de haver um laboratório virológico de alta segurança em Wuhan, onde apareceram os primeiros casos. De facto, essa hipótese é absurda. O vírus tem sido bem estudado e não há lá quaisquer marcas de intervenção humana.
Existe de facto um laboratório virológico de alta segurança em Wuhan. Não poderá ter sido um acidente?
CF - Não, acidentes com fugas de vírus já ocorreram noutros laboratórios menos seguros, mas nada indica que se tratou aqui de algum azar. Foi, isso sim, azar genético: os vírus, dentro de um hospedeiro, multiplicam o seu material genético e um erro nessa cópia pode ter consequências nefastas para nós.
As terapias alternativas viram aqui uma hipótese de divulgar os seus produtos, por exemplo, com suplementos para fortalecer a imunidade. Como analisam este fenómeno?
DM - As terapias alternativas aproveitam tudo para vender as suas mezinhas. Não há nenhum tratamento de nenhuma terapia alternativa ao qual seja exigido pelas autoridades de saúde o mesmo nível de prova de eficácia e segurança que é exigido a um medicamento para estar no mercado. Se as vacinas para a COVID-19 fossem terapias alternativas escusavam de se incomodar com ensaios clínicos. Mas também seriam completamente inúteis, claro.
Porque decidiram incluir Trump no vosso livro? Qual foi o papel dele no estado da pandemia nos EUA?
CF - No meu entender, Trump foi vítima da pandemia, ao não ser reeleito. Os indicadores económicas indicavam uma boa possibilidade da sua reeleição, mas ele não soube lidar com a o vírus. Foi dizendo mentiras sobre mentiras. Foi impedindo boas medidas de saúde pública, Tornou-se, no fundo, o responsável por demasiadas mortes nos EUA.
Dizem no livro que se propagou uma infodemia?
CF - Este é um novo termo, que significa propagação de desinformação. De facto, ao lado da pandemia, há uma outra crise: o espalhamento de mentiras, que podem ser tanto ou mais perigosas que o vírus, ao induzirem as pessoas em erro. A OMS bem avisou logo no início dos perigos da infodemia. Eles permanecem ainda hoje…
Qual é a pior teoria da conspiração?
CF - É como os mitos, aliás mitos e teorias de conspiração estão associados. Não há maneira de escalonar essas teorias: mas algumas são bem poderosas e vão para lá desta doença. A QAnon é uma teoria de conspiração da extrema-direita americana, segunda a qual há um plano secreto de um estado secreto contra o presidente, em breve ex-presidente Trump.
O que dizem dos "médicos pela verdade"? O que deve ser feito em relação a esta situação?
DM - São "médicos pelas mentiras". E usurpam o prestígio da profissão médica numa tentativa de as credibilizar aos olhos da opinião pública. Isto é muito grave, pois tem sérias implicações de saúde pública. Deveriam ser impedidos de continuar a exercer medicina e responsabilizados criminalmente.
Qual será o maior desafio da vacinação?
DM - Há muitos. Será um grande desafio vacinar rapidamente oito milhões de pessoas em Portugal. Será difícil gerir as expectativas de quem espera.
No caso dos grupos de risco, pessoas com doenças autoimunes, por exemplo, são aconselhadas a receber a vacina da COVID-19? Não há um risco pelo facto de nunca ter sido testada nestes grupos?
DM - Nos ensaios de Fase III participam pessoas de diversas idades e com várias condições de saúde, tais como diabetes, obesidade, doenças cardíacas ou do fígado. Em relação às doenças autoimunes, há algum receio que certos tipos de medicação possam reduzir o efeito da vacina. Mas essa é uma questão especializada. As pessoas deverão seguir as indicações dos seus médicos.
Como será o nosso Natal? Que conselho dariam às pessoas?
CF - Será o melhor Natal possível dadas as circunstâncias. A segunda vaga dá sinais de estar a diminuir, mas não podemos desistir na luta contra a doença. Em espaços fechados, abrir as janelas para ventilar bem. Para termos um Natal de 2021 com todos, é bem possível que tenhamos de ter o Natal de 2020 só com alguns. O vírus transmite-se entre os humanos, pelo que temos mesmo de diminuir os contactos entre as pessoas se queremos que ele não entre nós: se nos aproximarmos de alguém devemos usar sempre máscara. Além disso, higienizar locais, lavar as mãos com frequência, preferir sempre espaços abertos a fechados e ventilar bem os espaços fechados.
Para poder adicionar esta notícia deverá efectuar login.
Caso não esteja registado no site da SÁBADO, efectue o seu registo gratuito.
Quebrar o Silêncio ajuda mais de 300 homens vítimas de abusos sexuais em quatro anos
Vem aí a pior vaga da pandemia
"Como é que o bicho mexe?" de Bruno Nogueira está de regresso
Morreu a presidente da SOS Hepatites, Emília Rodrigues
Marketing Automation certified by E-GOI
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados. É expressamente proibida a reprodução na totalidade ou em parte, em qualquer tipo de suporte, sem prévia permissão por escrito da Cofina Media S.A.
Consulte a Política de Privacidade Cofina.