Vamos já à pergunta mais óbvia: Porque é que o José Mário deixou de gravar?
Foi porque o mundo está muito diferente e eu não consigo produzir um repertório com coisas que que eu ache que tenho de dizer às pessoas. De certa forma ainda não estou em situação de perceber suficientemente o mundo em que estamos para saírem canções sobre as questões da realidade. Não tenho uma visão das coisas que seja actualizada. Portanto, não foi por causa da idade, não foi por falta de voz, não foi por questões físicas ou doença, nem nada disso.
E porque deixou de tocar ao vivo?
Os concertos que eu fazia... As pessoas gostam muito, as cantigas mantêm-se actuais, mas começou a cheirar um bocado a nostalgia e isso a mim é um sentimento que me é insuportável. Porque a nostalgia é uma forma de egoísmo. É agarrarmo-nos a um desejo do passado, a vivências já vividas e não termos um elã para a frente. A nostalgia é óptima para a classe dominante: quanto mais nostálgica estiver a população - que é o caso actualmente, sobretudo malta mais da minha idade -, melhor é, porque as pessoas ficam desarmadas, sem projecto. E eu comecei a sentir-me um bocado mal em cima de um palco a cantar aquelas coisas. As pessoas estavam a gostar imenso e acendiam isqueiros e telemóveis e cantavam muitas coisas comigo. Mas eu comecei a sentir-me mal nessa situação.
E isso é uma decisão final?
O que de facto isto implica é que se trada uma suspensão, não foi uma decisão de abandonar os palcos e as canções definitivamente.
Mas continua a trabalhar com música.
Não páro de trabalhar, felizmente, não é? E componho muitas canções para os outros. Que me pedem, que fazem encomendas temáticas. Ainda ontem à tarde estive a acabar uma canção que me foi pedida por um amigo... E dirijo outros cantores, orquestro... Vamos a ver, a música é uma senhora com quem eu mantenho, desde Paris, uma relação de amantes. Não é um matrimónio. É daquelas relações que a gente se encontra para que seja bom. Não nos encontramos por obrigação. E eu sempre consegui manter esta relação com essa senhora. E, felizmente, até agora, ela nunca deixou de me sustentar. Paga-me o carro, paga-me a casa, enche-me o frigorífico, trata-me muito bem. Porque ela sabe também que, na primeira hora em que isso não acontecer, eu não me importo nada de ir apanhar lixo para a rua, voltar a trabalhar nos escritórios e nos bancos. Esta relação é para ser bom.
E tem sido?
Tem. Felizmente, tem.
Um dos seus últimos espectáculos ao vivo foram Os Três Cantos, com o Sérgio Godinho e o Fausto. Gostava de reviver esse projecto?
Quer dizer, talvez, não sei em que estado é que estão os outros. Foi muito trabalho para montar aquilo. Como sabe, eram muitos músicos em cena. Mas foi um trabalho empolgante. Eu andei sete anos a lutar para que se fizesse isso. Mas aquilo só era rentabilizável, em termos económicos, em recintos muito grandes. Fizemos o Campo Pequeno, em Lisboa, e o Coliseu do Porto. Depois houve tentativas, reunimo-nos para tentar encontrar um formato mais reduzido, com menos músicos que nos permitisse ir a salas pequenas... Se quer que lhe diga, não sei de quem foi a culpa de o projecto não continuar. Minha e do Sérgio e do Fausto não foi de certeza. Nós tínhamos imensa vontade de continuar.
O Zé Mário diz que não percebia muito bem o mundo, mas basta ver aqui as revistas, os livros que tem, sobre temas actuais.
É... Eu tento manter-me informado. Leio pessoas que acho que estão a pensar muito sobre o mundo de hoje, ver como é que eles olham para isto. Claro que eu tenho algumas ideias sobre o que está a acontecer, mas... E não leio só aqueles que eu já sei que estou de acordo à priori. Como é o caso desta excelente revista [The Economist] que defende o capitalismo que é coisa que eu não defendo.
E qual a sua opinião sobre a forma como o mundo tem vindo a evoluir nos anos em que deixou de cantar?
O que está em causa actualmente é uma mudança muito grande no mundo. Porque o capitalismo está a fazer finalmente aquilo que o Marx queria fazer no século XIX, que é unir as classes através do globo. O capitalismo é que vai conseguir levar à prática aquele apelo do Marx do século XIX: "Proletários de todo o mundo, uni-vos". E os capitalistas de todo o mundo já estão unidos há muito tempo. Agora, com a globalização da Finança e da Economia, isso provoca sobressaltos nacionalistas de todo o tipo. De esquerda, de direita… Assistimos ao ressurgimento de comportamentos que reagem a uma crise parecida com aquela que surgiu no início do século XX, não é? Que desaguou nos fascismos diversos.
Mas esses sempre foram os temas dos seus poemas: as desigualdades, a resistência, a liberdade, a descriminação. Esses problemas mantêm-se no século XXI, como existiam no século XX. Foram as pessoas que mudaram assim tanto para que já não as consiga entender?
Não. Porque o que falta de facto é eu perceber um projecto. Uma coisa é identificar a realidade. Outra é identificá-la o suficiente e pensar o suficiente nela para, em função da experiência havida, ser capaz de ter um projecto, uma ideia... Eu não sou - ao contrário do que muita gente pensa - um político. E sempre que me meti na política foi porque o músico que sou precisava de exprimir a sua busca de liberdade, a sua busca de realização humana, através de meios políticos.
Mas isso quer dizer que a inquietação que sente em si e nos outros não desapareceu, ainda.
Claro, claro. Essa inquietação que eu cantava na canção era transcendente. Aliás, a canção é inspirada por versos do Fernando Pessoa: "É como que um terraço/ Sobre outra coisa ainda/ Essa coisa é que é linda". Essa inquietação é uma coisa mais universal, mais poética. Mais relativa a todos os tempos e a todos os espaços. Essa inquietação faz, claro, parte da minha forma de ser desde muito jovem. E ela não aumenta nem diminui. Apenas muda de plano. Está noutro plano.
Com o Grupo de Animação Cultural cantou que a "cantiga é uma arma". A música ainda tem esse poder?
Pois... Acho, mas... Bem, é preciso renovar a leitura dessa canção à luz dos tempos de agora. É preciso abrir o conceito e perceber que tudo o que seja comunicação - inclusive a sua profissão - é uma arma também. O Ho Chí Minh, dirigente do Vietname comunista, um dia pegou numa espingarda-metralhadora G3. Mostrou-a às pessoas e disse: "Esta G3 que eu tenho na mão, se estiver nas mãos de um guerrilheiro vietcong é uma coisa. A mesma G3 se estiver nas mãos de um G.I. americano é outra coisa completamente diferente". E, no entanto, é o mesmo objecto. E nós temos de perceber isto no contexto da frase "a cantiga é uma arma". A comunicação é uma arma diferente, dependendo de quem comunica. É como o conceito de cantor ou música de intervenção. Tudo o que é comunicar, estabelecer contacto com a comunidade, é intervenção. Por esse caminho, o Toni Carreira intervém mais do que eu. Eu não consigo ter 12 mil mulheres famintas no Pavilhão Atlântico. Eu não consigo fazer isso. Nesse sentido ele intervém muito mais.
Então todo o acto de comunicar publicamente pode ser considerado uma forma de intervenção.
Claro. Porque não existe neutralidade. Nem para um actor, nem para um cantor, cineasta, pintor. Nem sequer para um jornalista. Não há neutralidade possível.
Este ano editou alguns inéditos. Gostou de fazer esse trabalho de arquivo, de ir pesquisar canções antigas e fazer uma selecção de material?
Sim, gostei, porque era um processo antigo, já do tempo do David Ferreira na EMI, lá para o fim dos anos 90. Esse duplo álbum tornou-se possível porque tenho vindo a colaborar com um grupo da Universidade Nova que se interessa muito pelas condições de produção da música popular. E eles conseguiram recuperar muitas fitas de um caixote enorme de bobines que eu lhes entreguei. E eles lá conseguiram ir recuperando esse material todo. Chegámos a ter umas três horas de música. E a partir daí foi preciso fazer uma selecção e reduzir isso a cerca de hora e meia.
E dessa hora e meia de música que ficou de fora, podemos ter outro disco de inéditos?
Acho que não, porque nós demos a volta àquela tralha toda. Esses jovens da Nova queriam mais músicas e disseram-me: "É um crime não meteres isto, é um crime não meteres aquilo!" e eu disse-lhes: "Deixem lá isso para a fase póstuma".
Na juventude, o José Mário rejeitava o fado. Desde 1995 é o produtor do Camané e escreveu fados para vários intérpretes. O que o levou a mudar de atitude perante esta música?
Foi o amor. Foi por ter encontrado a Manela que, desde a juventude, tinha uma relação intensa com o mundo do fado. Não como cantora, mas como amante da poesia e como actriz. Porque o fado tem essa coisa interessante: se calhar, tem muito mais a ver com o teatro do que com a música. No sentido que o teatro é, de todas as artes, a que mais se realiza na presença física. Se calhar, no fado o lado teatral tem muito mais importância que o lado musical.
Mas o Zé Mário era contra o fado, mesmo.
Eu pertenço a uma geração que era contra o fado, que foi educada assim. Para já, não sou de Lisboa, nasci e cresci no Porto e fui influenciado pelos meus mestres e homens que eu admirava, como, por exemplo, o Fernando Lopes-Graça, que escreveu vários artigos a teorizar contra o fado. E portanto, desde a juventude que eu era contra o fado. E isso está relacionado com toda uma questão cultural e política, por causa da ditadura. Porque o acto criativo é o acto supremo da liberdade. E essa vontade de liberdade entrava em conflito com a ditadura e censura, que ditava o fado como canção nacional.
E por a ditadura impôr o fado como canção nacional, levou-o a negar essa canção?
Eu e os meus amigos adorávamos o trabalho dos etnomusicólogos que descobriam a riqueza e a variedade imensa da música tradicional portuguesa. Portugal é um país pequeno, mas tem micro paisagens, micro economias, micro climas, micro culturas tradicionais. Anda-se 100 km e está-se noutra cena. Então a escolha do fado como canção nacional ofendia-nos. Fado canção nacional? Não. Fado é uma canção de alguns bairros de Lisboa e pronto.
E toda essa animosidade contra o fado mudou quando se apaixonou.
Em 79 conheci a Manuela, começámos a conversar e ela explicou-me que o fado é como tudo o resto: tem o bom, o assim-assim e o mau. A maior parte é assim-assim, depois uma grande parte é mau e uma pequena parte é bom. Mas, sobretudo, a Manela explicava-me o porquê de ser bom ou não. Os grandes fadistas têm uma coisa que tem a ver com o desplante, olhar as pessoas nos olhos. O fadista é um contador de histórias, é uma pessoa que exprime emoções, como o actor.
Isto já se passou numa nova fase da sua música. Foi já depois do GAC.
Foi numa época já refluxo do PREC, não é? Uma época de alguma contradição minhas com os camaradas. Perceber que havia ali um discurso que estava cristalizado, que não correspondia à vida real no país. O primeiro fado que eu fiz chama-se "Fado da Tristeza", do Ser Solidário. Que é uma indirecta aos camaradas que diziam "Só a alegria é que é revolucionária", como dizia o Lenine. Mas não. Para estarmos ligados à vida temos que ter todos os aspectos da vida. A alegria sim, mas a tristeza também. A vitória e a derrota, tudo. Depois fiz um fado a pedido para o Carlos do Carmo. E pronto, fui fazendo coisas.
E quando surge o Camané?
Aí em 94 ou 95 o Camané queria gravar e o David Ferreira queria que eu produzisse. E eu disse ao Camané que o fado era uma tradição antiga e que eu estava em desacordo com um certo experimentalismo bacoco que existe em relação ao fado. Um experimentalismo em que se mete um violino, e agora um acordeão e não sei quê. E eu disse ao Camané: "Isto é uma tradição antiga e o que mais me atrai nesta situação é haver ali uma estrutura instrumental e tímbrica e um relacionamento dos instrumentos com o cantor que é única". "Pá, vamos tentar, vamos mexer nisto com pinças. Porque é uma coisa muita séria, muito antiga." E assim foi, fomos aprendendo os dois à medida que o tempo passou. Tem sido muito importante para o Camané, mas é preciso dizer que foi muito importante para mim também. O Camané é um talento enorme, portanto suscita muito a criatividade.
Produziu também a Kátia Guerreiro. Tem outros fadistas que gostava de produzir, dos novos?
Quando esta relação com o fado foi construída a trabalhar com o Camané, torna-se um bocadinho difícil trabalhar com qualquer outra pessoa em qualquer circunstância. Fica-se muito mais selectivo, muito mais exigente. Há de facto muitas solicitações, mas é raro haver um caso que me desperte interesse. O caso da Kátia foi um caso engraçado porque pessoalmente não havia nada que nos aproximasse, pelo contrário, e depois resolvemos tentar e foi óptimo. Não só a Kátia é uma pessoa fora de série, como o trabalho com ela foi exemplar porque ela chegou ao trabalho, ao projecto, completamente desarmada. Uma mulher que já tinha na altura 16 ou 17 anos de carreira. E que carreira... E ela tem uma coisa espantosa que é o rigor, uma coisa que eu adoro. E, portanto, tudo o que se falava nos ensaios era anotado. E eu reparava que no ensaio seguinte, isso tinha sido trabalhado em casa, tinha sido assimilado. E eu não trabalho com ninguém no género de dizer: "É assim que se faz, não é assado". Eu nunca faço isso. Eu deixo fazer e depois pergunto: "Porque é que fizeste assim? Essa nota longa é para quê? Porque é que não é curta?" Só sei trabalhar com perguntas. Obrigando o outro a pensar, a decidir, a escolher. A ir buscar as coisas mais fundas.
E o que é que procura numa artista, enquanto produtor
O mais fundamental desse trabalho todo é a luta permanente entre expressão e exibição. Onde há expressão, não há exibição. Onde há exibição, não há expressão. Portanto, imagina, como é que eu oiço agora a maior parte da tralha que se faz no fado. Sobretudo, desde que o fado se tornou um negócio apetecível, com o património mundial. A tralha que eu ouço, pá... Que maior parte é exibição pura. Temos de ir aos mais antigos, ou então nos recentes, pouco mais que o Carlos do Carmo e o Camané, percebes? Que é perceber aquela densidade interpretativa que existe. Não tem a ver com o canto, não tem a ver com a voz. Não é preciso ter voz para nada. O Marceneiro tem voz? Quer dizer... Pelo amor de Deus, aquilo não é voz. Aquilo é uma coisa roufenha que está para ali. Aquilo é a presença dele. No resto da música, a coisa não é muito diferente, não é? Que voz é que tem o Tom Waits? Que voz é que tinha a Nina Simone no fim da vida? Não interessa nada. São intérpretes geniais porque a gente percebe que há está ali dentro uma coisa que está a ser dita. Então a tralha actual é muito... Há muita acrobacia vocal, muita palha.
Quando produziu o Zeca, na canção "Senhor Arcanjo", mostra-se muito assertivo naquilo que quer. Continua a ser assim?
A canção teve vários arranques. A base da canção foi feita com o Zeca, o Bóris com a sua guitarra acústica, dentro de uma casota no próprio estúdio e o Michele de La Porte com as tablas. E a cantiga teve vários arranques. O Michelle era um gajo um bocado insuportável, mal educado, um tipo espantoso e ao terceiro ou quarto arranque, começa a mandar vir. Mas quem diz "Ó Zé Mario, não se ouve", é o desgraçado que está dentro da casota com a guitarra clássica: Tadam, tadam, tadam, tadam... E que pára mais uma vez e diz: "Ó Zé Mário, não se ouve", como quem diz: "Vejam aí na cabine, porque eu não oiço os outros". Nós decidimos depois pôr isso na abertura do álbum como uma espécie de homenagem à oficina das coisas. Para o público perceber como as coisas se fazem. Os músicos são pessoas que se enganam, pessoas que tentam.
Neste momento, a discografia do Zeca está descontinuada. E o Zé Mário sempre se mostrou interessado em continuar o legado de dar a conhecer a obra, a renovar o interesse. O que sente por a mesma não ser editada há vários anos?
Acho um crime! É um crime. Não percebo como é que, sei lá, a família, a Associação José Afonso... A AJA acho que está a pensar nisso porque não faz o mínimo sentido impedir-se que as gerações sucessivas vão conhecendo a obra do Zeca. É criminoso. Pá, editem os discos e depois que os mandem prender, se quiserem, pá...! Eu ouço a obra toda do Zeca para aí duas vezes por ano. O Zeca morreu em 87, imagine as vezes que já ouvi aquilo. Estou sempre a encontrar coisas que nunca tinha reparado. Estou sempre a descobrir novos ensinamentos naquela obra.
Há alguma canção do Zeca que tenha mesmo inveja de não ter composto e gravado?
Muitas, muitas. Ele tem para aí 159 canções gravadas, pá, qualquer delas eu ficava feliz se tivesse feito uma coisa assim.
E se pudesse escolher só uma?
Não posso. É impossível, é impossível.
Saindo da música, esteve no PCP...
Eu era Católico, depois em 58, na campanha do Delgado, eu tinha 16 anos... E era um católico comprometido. Praticante a sério. Fiz o crisma, fui dirigente local da Juventude Católica... E o que me ficou da campanha do Delgado foi que a Igreja estava feita com o regime, coisa da qual eu não tinha consciência. E portanto, comecei-me a afastar, comecei a achar aquilo tudo uma palhaçada... E em pouco tempo saltei para o único sítio onde percebei que se podia fazer qualquer coisa contra a ditadura. Mudar a vida, mudar as coisas. Que era o Partido Comunista clandestino. Era a única hipótese. Saltei quase directo de uma igreja para a outra, não é?
E porque saiu então do PCP?
E rapidamente a coisa começou a correr mal com o PC, com a minha própria prisão. Eu fui preso no meio de um grupo enorme de pessoas. Fomos todos presos por denúncia interna do partido. A PIDE sabia mais sobre mim do que eu próprio. Aí correu mal, depois o PC assumiu uma postura em relação à Guerra colonial igual à que tinha assumido o PCF em relação à guerra da Argélia, que era que os comunistas deviam ir para a guerra, para a frente de combate fazer trabalho político. Como se isso fosse possível. Na frente de guerra quem tem a canhota é quem atira primeiro. É esse que se safa. Não há cá histórias de trabalho político. É morrer ou sobreviver. Mas dividiu-nos um bocado essa palavra de ordem de ir para a frente de guerra. Por exemplo, o Alegre foi. Foi preso, tentou levantar os soldados contra a guerra, mas a nós isso parecia-nos totalmente ilusório e prejudicial para os nossos irmãos verdadeiros que eram os africanos. Resultado dessa discussão acabei por ir para França... Fugir para França sem qualquer apoio do PCP.
E em França já não tinha relações com o partido?
Cheguei lá, ainda me convocaram para umas reuniões e não sei o quê. Mas é nesse período que começa a haver aquilo que se chamou o diferendo sino-soviético, entre a China e a União Soviética. E em 64 dá-se, dentro do PCP, a primeira cisão. E eu rapidamente fiquei envolvido nessa primeira cisão. Pareciam-nos mais correctas, de uma forma geral, as posições de Mao Tsé-Tung. E essa ligação ao PC ficou-se por aí porque eu comecei a dar-me com pessoas mal vistas no PC. "Ah, foste visto no café não sei quê com fulano e sicrano, andas com más companhias" e eu respondia: "Epá, vão-se lixar, eu ando com quem quiser, pá, o que é que vocês têm a ver com isso, pá?! Metam-se na vossa vida, pá!" Eu não fiz carreira política porque não tenho jeito nenhum mesmo. Quero é que haja barulho, que haja revolta, mudança da vida. Isso é que eu quero. Depois contribuo com as canções, com as coisas que eu sei fazer...
Mas também esteve no Bloco de Esquerda e depois saiu. Porque é que saiu sempre dos partidos onde esteve envolvido?
Na última vez que falei no Bloco antes de sair, num comício, eu disse: "Eu nunca saí de partido nenhum. Os partidos é que foram saindo de mim". Porque os meus valores são os mesmos que foram sempre, percebes? O que está em causa aqui é a maneira como são aplicados na prática.
E o Bloco que existe hoje não é o Bloco do passado?
Não, porque eu estava numa coisa mais fresca, mais contestatária, mais... Não a olhar para o povo de cima das instituições, mas a olhar para as instituições de dentro do povo. Eu tinha a ideia que aquilo devia ser uma coisa popular, de reivindicações populares... Uma linguagem adaptada a isso e não toda formal e parlamentar... Não me interessa... Eu não estou a dizer "Sou contra! Odeio". Não é isso... Mas não me interessa ... Não me interessa...
E nem o PCP nem o Bloco são partidos populares hoje?
O PC é um bocadinho mais. Porque tem aqueles genes, não é?
Mas o Bloco não é já um partido do povo?
Eu acho que nunca chegou a ser... Mas já não é o partido das reivindicações iniciais, não. Está com outras ambições.
Mas continua a ser um partido vocal sobre os direitos da mulher. O Zé Mário tem uma das grandes canções feministas do cancioneiro contemporâneo português em "Casa Comigo Marta". Uma canção sobre os direitos e a vontade da mulher. Desde o lançamento de Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, onde apareceu essa canção, houve uma grande evolução dos direitos das mulheres? E ainda há um longo caminho a percorrer?
Há um longo caminho a percorrer, pelo amor de Deus. Em 72, um ano depois disso, da Marta eu gravei uma canção que sairia no Margem de Certa Maneira e que se chama "Aqui Dentro de Casa" que é explicitamente feminista. E que me causou alguns problemas porque nessa cantiga o homem que oprime a mulher é de esquerda, é um sindicalista. Fala da luta de classes: "Pegas-me na mão e falas do patrão/ Que te paga um salário de fome/ O teu patrão que te rouba o que come". E eu conhecia pessoas que se diziam de esquerda e que em casa tratavam mal as mulheres, porque era normal tratar mal as mulheres. E eu dizia-lhes: "Epá, não, pá. Nós tratamos mal as nossas mulheres e não pode ser". E houve pessoas que ficaram chateadas comigo quando eu publiquei essa canção. Ainda por cima o título – Aqui Dentro de Casa - é para chatear mesmo. Mas ainda não está nada resolvido... Nada, quer dizer... Isso não está resolvido. Quantas mulheres é que morrem todos os anos?
Este ano foram já 24 mulheres as vítimas mortais da violência doméstica...
É uma chacina, uma chacina. E depois verificamos uma coisa que mete mais medo até, que é o estado em que estão os juízes e as juízas que julgam esses casos. É assustador. É a única parte do Estado português em que não houve revolução de 74. Nada. Alguns tipos tentaram fazer alguma modernização do sistema judicial, mas os juízes, pá, essa cena toda... Pouco mudou. E assusta um bocado ver coisas que se dizem e se escrevem tanto juízas como juízes, quando estão em causa os direitos da mulher. Aquele caso do homem e do amante com uma moca cheia de pregos a agredir uma mulher, pá.. E o gajo escreve que no é de admirar porque ela tinha um amante.
A Justiça não mudou no 25 de Abril. E os portugueses ainda se lembram das reivindicações de Abril? As conquistas de Abril? É muito comum ouvir-se "antes é que se estava bem".
Uma vez uma velhota disse "Este Salazar é pior que o outro". Ahahah! O 25 de Abril foi um processo muito espontâneo, do ponto de vista povo. Isso percebeu-se melhor nas campanhas de dinamização do Movimento das Forças Armadas, em 74, 75. Que é quando os soldados iam com grupos de teatros e cantores aos sítios mais recuados do país explicar o que tinha acontecido, perguntar do que é que eles precisavam... Aí estávamos no plano da vida concreta. Houve um tipo que escreveu um livro grande sobre a revolução chinesa, um comunista canadiano que é o William Hinton. Um livro que se chama Fanshen. Porque ele reparou que já depois da revolução e da tomada do poder em 1948, na China recuada, as pessoas passavam umas pelas outras e à laia de cumprimento, diziam "fanshen" e o outro respondia "fanshen". E ele foi tentar perceber o que era isso. Era em chinês antigo. Uma coisa que queria dizer "já recebeste a tua parte?" e o outro respondia: "já recebeste a tua parte?". Temos sempre de ver uma revolução como uma mudança na vida em que a preocupação central é que cada um receba a sua parte. Só isto. É tão simples, não é? Então olhe-se para este país e para o seu percurso a ver se cada um recebeu a sua parte ou não. É isso que é preciso fazer.
Sou português, pequeno-burguês de origem, filho de professores primários, artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro, faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto, muito mais vivo que morto...
Contai com isto de mim para cantar e para o resto.
Se tivesse de voltar a escrever estes versos, o que mudava?
Era a mesma coisa. Eu tenho uns amigos do hip-hop que dizem que o "FMI" foi o primeiro rap português. Ahahah! Mas isso foi o tempo do refluxo, tempo da derrota. Por isso é que tudo isso tem um ar tão confessional, tão de vómito. O "FMI" foi uma catarse que eu tinha de fazer e que resolvi partilhar. E a questão de fundo dessa canção é a felicidade. "Quero ser feliz, porra." Eu tive a grande sorte de, para além do 25 de Abril ter vivido o Maio de 68 em Paris. Um dia ia a subir o Boulevard San Michel, para comprar um livro no meu Fiat 600 e vi um grande aglomerado de pessoas com ar bastante agitado. E saí do carro e fui ver o que era. E era um grupo de pessoas muito heterogéneo com mães com sacos das compras, raparigas novinhas, rapazes cabeludos, estudantes, senhores de fato e pasta, padres, militares... Havia de tudo. Aquilo era uma amostra da sociedade parisiense aos gritos uns com os outros. Eu perguntei a alguém: "Desculpe, qual é o problema?" e ele olhou para mim com um ar muito sério e disse: "estamos a discutir a felicidade. O que é ser feliz". Esses momentos, são momentos em que tudo é possível. Se formos capazes de mudar suficientemente a vida, criamos condições para o "fan chen". Que é a questão central de toda a mudança política: "Já recebeste a tua parte", sempre com um grande ponto de interrogação à frente. Depois de cada pessoa responder a essa pergunta, percebemos que maior parte não recebeu. E aquilo que achamos bom se calhar não é tão bom assim. Porque o nosso tempo trouxe uma coisa nova: o lixo. A quantidade de lixo.
O Zé Mário conseguiu, enfim, ser feliz, porra?
Sou o que Marx chamava um optimista relativo. Tenho uma confiança enorme que a Humanidade vai continuar falando de maneira abstracta, a resolver os seus problemas e a avançar no sentido da beleza, do amor, da justiça... Daqueles valores mais gerais a que nos agarramos muito principalmente nestes períodos de vazio. Mas estou convencido, parece-me que vai haver muita dor, muito sofrimento, muito horror nisto tudo, para chegar a um mundo melhor.
Isto não dá uma canção de um disco do José Mário Branco?
Dá. Mas só dá uma.
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