Dentro da creche do Estabelecimento Prisional de Tires, nos arredores de Lisboa, não estamos na prisão. Ouvem-se crianças a rir, há paredes decoradas com autocolantes e folhas de outono de papel penduradas do teto. Aqui dentro as crianças – até aos três anos – fazem o dia-a-dia de qualquer outra criança e as mães, reclusas, conseguem esquecer por momentos que vivem em reclusão.
Mas não querem contar as suas histórias. Pelo menos hoje. Sentadas numa sala colorida, em cadeiras destinadas aos mais pequeninos, as mães têm os bebés ao colo. Uns mais pequenos, com dois meses, outros mais crescidos – estes passeiam e brincam, vestidos de bata azul e branca, pela sala.
"Nasceu cá", diz uma das mulheres enquanto olha para o colo, onde repousa o filho de oito meses. O tom com que o diz é, ao mesmo tempo, pesado e leve – como quem lamenta que os primeiros meses do seu bebé sejam vividos atrás de grades mas agradece poder tê-lo nos braços todos os dias.
Mas é fora da creche que se percebe que não estamos a olhar para crianças e mães como aquelas com que nos cruzamos na rua. Na Casa das Mães, como foi apelidada a ala prisional onde ficam as mulheres grávidas e com filhos, há três portões grandes que sabemos que se fecham, e celas com portas cinzentas, apenas com uma pequena abertura, que se trancam por fora. No interior, há berços e mantas de bebés. É aqui que os filhos, dentro de cada cela, dormem com as mães.
"Chamamos-lhes quartos", conta Maria [nome fictício] a todos os jornalistas presentes na visita ao Estabelecimento Prisional (EP) de Tires para assinalar o Dia Internacional dos Direitos das Crianças. Luísa [nome fictício] tem um ano e meio. Foi com a mãe para o EP de Tires aos três meses. "É a única realidade que ela conhece", responde quando lhe perguntam se acha que a criança estaria melhor fora da prisão.
Maria foi escolhida pelos serviços prisionais para falar sobre os dias na prisão. Por lei, uma reclusa pode viver com o filho na prisão até aos três anos. Excecionalmente, até aos cinco.
A filha, Luísa, risca animada um bloco de notas de uma jornalista enquanto a mãe fala. É uma das 18 crianças que vive na prisão de Tires. Passa o dia na creche, onde brinca com as outras crianças e com as duas educadoras que ali trabalham. É a mãe que lhe dá o pequeno-almoço, o almoço e o jantar – nos intervalos do trabalho na cantina. Luísa sai da prisão para estar com a família e volta, sempre sem chorar. Mas quando fizer três anos, a idade em que sem situação excecional todas as crianças abandonam o EP, Luísa vai deixar de estar com a mãe todos os dias. Passará a visitá-la duas vezes por semana.
"Era ótimo que eles pudessem ficar connosco mais um bocadinho", diz Maria, com lágrimas nos olhos. Porque os filhos são um apoio ali dentro, uma forma de disfarçar a dura realidade, frisa. Apesar de a reclusa perceber que eles não podem ficar, que "chega uma altura que isto deixa de fazer sentido para eles".
A maior parte das mães que ali está escolheu trazer os filhos. Tinham alternativas, podiam tê-los deixado com familiares. Maria recusou e quis ser mãe de direito: "Que vínculo é que a Luísa teria comigo quando entrei para aqui, com ela com três meses? Ela nunca me iria reconhecer como mãe. Se ela não estivesse aqui comigo eu era a mãe dela apenas de nome."
Mas será esta opção benéfica do ponto de vista psicológico para estas crianças? Manuel Coutinho, secretário-geral do Instituto de Apoio à Criança (IAC), pensa que não. "Sabendo que é uma situação, à partida, muito complexa acho que devia ser repensada a detenção destas mães", diz à SÁBADO. E apesar de compreender que a mãe precisa de pagar à sociedade pelo crime que cometeu, defende que a criança não tem culpa: "Por muito humanizada que uma cadeia esteja, por muito bem que uma criança fique ao pé da mãe, é sempre uma situação de reclusão" que não é boa para a criança.
Para o psicólogo clínico a solução passaria pela prisão domiciliária. "Devia haver exceção por causa da criança", defende. "O filho que não fez nada está em reclusão com a mãe e isso não é justo."
"Quanto mais nova [a criança], mais marcas deixam os traumatismos psicológicos a que estão sujeitas", revela Manuel Coutinho, ao explicar que os primeiros anos de vida de uma criança são cruciais e têm "reflexos brutais" num futuro jovem ou adolescente. "O ambiente de uma cadeia certamente não é o ambiente mais apropriado para uma criança".
A família que nunca está reunida
O dia destas crianças pode parecer muito semelhante ao daquelas que vivem em liberdade. As mães preparam-nas para a creche, onde brincam com as outras crianças, pintam e cantam. São as mães que lhes dão o jantar e que as deitam na cama. Mas Luísa, tal como muitas das outras crianças, nunca viu a família reunida. Tem irmãs lá fora, que as visitam, tem o pai, que também as vai ver. Mas nunca estiveram todos juntos.
As visitas alargadas são "uma possibilidade muito real", garante Paula Costa, inspetora coordenadora da Direção Geral dos Serviços Prisionais – que se juntou à Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) para organizar a visita ao EP de Tires.
No entanto, estas visitas implicam uma reestruturação e meios e locais próprios. "Mas é uma possibilidade e uma possibilidade séria", assegura a magistrada.
Este é um dos "bens essenciais" que, tal como a liberdade, estas crianças não têm. "É um dos direitos de toda e qualquer criança: ser livre", diz Carla Oliveira, secretária-geral da ASJP. "Aqui, por muito melhor que seja a vida, por muitas condições que existam, o que é certo é que [estas crianças] não são livres como as crianças que vivem lá fora, numa casa com toda a família. Aqui, vivem numa cela com a mãe. Podem chamar-lhe quarto, mas é uma cela".
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