O jogo de sombras e a revisão dos estatutos das magistraturas

A Senhora Ministra da Justiça nomeou recentemente uma comissão para proceder à revisão do estatuto do Ministério Público, com o objectivo de o adequar à nova organização judiciária.

Com a revisão dos estatutos das magistraturas completa-se a reforma judiciária. Esta, foi iniciada pelo anterior executivo, mas não foi concluída por diversas razões.

Estes diplomas deveriam ter sido revistos antes de Setembro de 2014, pois muitas das suas normas não se encontram compatibilizadas com a nova orgânica criada pela Lei de Organização do Sistema Judiciário.

A inexistência de um estatuto do Ministério Público actualizado tem dado origem a problemas de organização interna, designadamente a uma indefinição hierárquica, dificuldades de coordenação e aumento de burocracia.

Numa estrutura hierárquica é essencial que se saiba a quem se deve reportar e quais os poderes e competências de cada um.

A composição da comissão que irá proceder à revisão do estatuto do Ministério Público dá garantias de que, em princípio, será elaborada uma boa proposta.

Os juristas que integram a mesma conhecem profundamente o Ministério Público e quais os desafios que se lhe afiguram.

No entanto, esta circunstância não é suficiente para nos deixar descansados.

A História demonstra que os processos de alteração dos estatutos das magistraturas envolvem sempre episódios rocambolescos.

Tal como aconteceu no passado, o facto de uma comissão trabalhar durante vários meses na elaboração de um documento, envolvendo uma pluralidade de instituições, não garante que aquele venha a ser a proposta do Ministério da Justiça.

Poderá até suceder que aparentemente o documento elaborado pela comissão se mantenha, mas o Ministério da Justiça altere cirurgicamente duas ou três normais fundamentais que afectem a autonomia do Ministério Público e o pretendam colocar sob a tutela do poder politico, como sucedeu recentemente.

Noutra ocasião, há uns anos atrás, o executivo negociou uma proposta de revisão do estatuto, tendo inclusivamente acordado o articulado com o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e com a Procuradoria-Geral da República.

Quando a proposta chegou à Assembleia da República, alguns dos principais pontos caíram, a proposta foi completamente desfigurada e, inclusivamente, consagraram-se soluções precisamente contrárias às inicialmente acordadas.

É curioso que em todos os casos, as alterações surgiram de forma súbita e sem que existisse qualquer discussão ou negociação com os parceiros que trabalharam e estudaram a proposta.

A política do facto consumado e a inclusão de "normas surpresa" que nunca foram discutidas, demonstra que em algumas circunstâncias ocorrem revisões subterrâneas destinadas a dar cobertura a determinados interesses que pretendem controlar as magistraturas.

A revisão dos estatutos das magistraturas poderá afirmar as mesmas, mas também configura um risco.

A preservação da autonomia do Ministério Público e independência dos tribunais são princípios basilares que não poderão ser beliscados, antes pelo contrário deverão ser preservados e reforçados.

Esperamos que a convergência partidária necessária à aprovação destes diplomas estruturantes imponha uma séria reflexão e consenso nas soluções a adoptar, pois a alteração do quadro legal que rege as magistraturas tem um impacto profundo no sistema de justiça.

Por último, é imperioso que durante todo o processo legislativo a Senhora Ministra da Justiça consiga resistir à pressão que alguns efectuarão para tentar conformar os estatutos das magistraturas com alguns interesses que se movem na sombra.

____________

António Ventinhas é presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público

---