As figuras que se fazem

A Universidade de Coimbra enfiou o eng. Guterres em farpelas catitas, pendurou-lhe uns pechisbeques e atribuiu-lhe o título de doutor honoris causa. É castigo suficiente? Eu acharia que sim. Outros, pelos vistos, acham que se tratou de uma recompensa. O prof. Marcelo, por exemplo, que aproveitou a festiva ocasião para decretar o eng. Guterres "a figura mais brilhante da sua geração" e "porventura, o primeiro-ministro mais amado de Portugal". Para um pequeno socialista, celebrizado após décadas de intriga partidária e alucinações irresponsáveis acerca dos méritos do sector público, não está mal. Vindo de um homem que se celebrizará por reduzir a Presidência da República a um festival de variedades, também está bem.

Aliás, é assim que as coisas se fazem por aqui. Bastaria espreitar as imagens da bela cerimónia coimbrã para se perceber porque chegamos onde chegamos. Uma instituição de ensino que conta entre os seus jubilados o dr. Boaventura, embaixador indígena das ditaduras latinas, homenageia um governante embaraçoso, sob os auspícios de um chefe de Estado recreativo (ou um "sobredotado" de "inteligência fulgurante"), de um primeiro-ministro que se aliou a estalinistas para estrafegar o País (ou um "príncipe de política" e um "hábil negociador") e de diversos vultos de discreto mérito, todos considerados prodigiosos pelos seus pares na vida e na sabujice mútua.

Não custa nada. A é fabuloso na medida em que B, de quem A diz maravilhas, o garante. Por seu lado, A e B juntam-se para louvar C, que ao almoço recomenda ambos para uma comenda a D, o qual classificam de espectacular em uníssono. Pelo meio, o influente comentador E, que A, B, C e sobretudo D têm em elevada conta, assina uma peça em que louva A, B, C, D e ainda G e H. À primeira oportunidade, G declara que A e B constituem os maiores vultos do Ocidente desde Gutenberg e Copérnico. H, que andava amuado com C, recebe entretanto a presidência de um instituto público e acede a comparar favoravelmente B e C com Mandela. Imparável, E rabisca nova peça entusiástica.

Em teoria, as elites dirigentes deviam ser o resultado das respectivas acções decisivas, visões redentoras, pensamentos pertinentes. Em Portugal, na política e no resto, o único fundamento é a opinião dos parceiros: conhecidas nulidades que exaltam nulidades menos conhecidas de modo a divulgar as segundas e, retribuído o favor, a solidificar o próprio "prestígio". No actual regime, o padrão ficou definido desde o dr. Soares, "humanista" de serventia discutível que, com interrupção estratégica a meio da longa vida, desde jovem namorou totalitarismos e, dada a força de um cliché absurdo e repetido, acabou consagrado enquanto o "pai da democracia". Não admira que a filha saísse destrambelhada.

Como temos portentos da literatura incapazes de alinhavar um parágrafo legível, e génios da pintura que plagiam sem vergonha, temos sujeitos sem competência para gerir um condomínio erguidos a estadistas de dimensão universal. E, muito por excesso de figuras tão brilhantes, temos um futuro radioso atrás de nós.

O BOM
Falsas modéstias
O Governo diz que a poupança resultante dos cortes nos "contratos de associação" com os colégios privados pagará os manuais escolares. O Governo ou é modesto ou tem um péssimo gabinete de comunicação: toda a gente sabe que os euros economizados servirão também para financiar o SNS, modernizar a Justiça, salvar a segurança social, baixar os impostos, controlar o défice, patrocinar estudos (públicos) de português a Jorge Jesus e a António Costa, promover o montanhismo, alcatifar estradas e curar paralíticos. Com as sobras, ainda nos pagam duas jantaradas. Ou três.

O MAU
O golpe era outro
Primeiro, li com agrado que deputados, cançonetistas e "personalidades" avulsas se reuniram no teatro Tivoli para protestar o golpe de Estado "constitucional" que derrubou um governo eleito para colocar em seu lugar um bando de oportunistas. De seguida, verti uma emocionada lágrima. Depois, preparei-me para escrever um elogio dessa brava gente, que sem hesitações arrisca empregos e conforto para denunciar o assalto ao poder por parte de criaturas prepotentes e perigosas. Por fim, percebi que estavam a falar do Brasil e fui à minha vida.

O VILÃO
O socialismo científico tem de ir à bruxa
Quando o socialismo falha, ou seja, sempre, os seus entusiastas têm pronta uma lista de desculpas para o desastre. De alguma maneira, a "essência" da coisa, em si tão linda, acaba estragada por interferências externas ou desvarios internos. No caso da Venezuela, cada devoto oferece uma explicação. A mais divertida é a que garante que o sr. Maduro é louco (por contraponto ao equilíbrio emocional do odre seu antecessor). Afinal, apenas a demência inata ou adquirida do chefe impediu aquilo de prosperar como prometia. Trocar de regime? Só se fossem malucos.

---