
É com grande espanto que se toma conhecimento do nosso próximo adversário: a Coreia do Norte. Vencedores do grupo 3, os Magriços têm por adversário o segundo classificado do grupo 4 e tudo indica que fosse a Itália, depois de a URSS ter garantido a liderança. Basta aos italianos o empate no seu confronto com os asiáticos para passarem à fase seguinte. Mas não é que a Coreia ganha o jogo (1-0)? É o grande escândalo de 1966.
O jogo dos quartos-de-final é em Goodison Park, casa do Everton. A Coreia faz um arranque sublime com 3-0 aos 25 minutos. É então que começa o festival Eusébio. Uma bola colocada resulta no 1-3 e inicia uma recuperação na qual já poucos acreditam. Depois, na transformação de uma grande penalidade, a castigar derrube sobre Torres, o Pantera reduz mais ainda. Renascem todas as esperanças com o apito para o intervalo. No balneário, a palestra do seleccionador Otto Glória intimida todos. "Ele disse-nos coisas impublicáveis", garante José Augusto. "Ele disse palavras que eu nunca tinha ouvido", desabafa Eusébio.
Pertence a Simões, já na parte complementar, o passe de mestre que dá a Eusébio a possibilidade do remate fulminante que estabelece o empate. A seguir, para não variar, Eusébio arranca pela esquerda, poderoso, desde o seu meio-campo e é derrubado pelas costas. Penálti indiscutível, que ele próprio transforma. O lance ainda hoje é visto e revisto nas escolas de formação do Ajax. Conta Kluivert, também ele alcunhado de Pantera. "Lembro-me do Portugal-Coreia do Norte. Da correria de Eusébio naquele lance que resultou o 4-3. Esse vídeo ainda hoje é mostrado em todos os escalões jovens do Ajax como exemplo de controlo de bola. E, de facto, Eusébio agarra a bola no meio-campo, passa uns dois ou três adversários, antes de ser duplamente rasteirado na grande área." Kluivert pára um pouco e finaliza. "Foi uma jogada tremenda. Quando a bola lhe chegou, nunca ninguém pensou que ele fosse por ali fora até entrar na área. Verdadeiramente fantástico. Todos nós ficámos boquiabertos, enquanto ouvíamos os treinadores: ‘tomem atenção a este lance, porque isto é que é um controlo de bola perfeito, sob pressão.’"
De volta ao jogo, 4-3 para Portugal. O lugar das meias-finais já ninguém nos tira. Para vincar a nossa superioridade, José Augusto ainda marcaria o golo da confirmação, a passe de Eusébio. Cinco-três e um jogo para contar aos netos. Nem sempre pelos melhores motivos. Veja-se o caso da Coreia do Norte, a primeira selecção asiática a passar a fase de grupos de um Mundial: sem qualquer relação diplomática com a Inglaterra devido à intervenção deste país na Guerra das Coreias 12 anos antes, a Coreia do Norte, um país comunista e fechadíssimo ao exterior, aterra em Londres. Há a possibilidade de os ingleses negarem o visto de entrada aos norte-coreanos mas a FIFA desbloqueia a situação.
No campo, a Coreia do Norte perde na estreia (0-3 com URSS), empata com o Chile (1-1) e ganha à Itália (1-0). Nos quartos-de-final, é travada por Portugal. Nomes como Ri Chan Myong (guarda-redes), Pak Doo-Ik (autor do golo à Itália), Park Seung-zin (que marca a Portugal aos 53 segundos) mereciam ser bem recebidos e tratados como heróis. Mas não o são. Um ano depois do regresso a casa, os seus jogadores são condenados ao exílio pelo regime e impedidos de jogar futebol em vez das medalhas prometidas por parte do ditador Kim Il-sung.
O motivo? A descoberta da forma como os jogadores celebram a vitória com a Itália: com música, mulheres e álcool. O que é uma ofensa aos ideais seguidos pela ditadura de então (e de hoje, também) e um mau exemplo de desonra e fraqueza moral. Pak Doo-ik, um dos heróis dessa epopeia em Inglaterra e alcunhado de dentista, em jeito de graça pelo golo à Itália ter causado tanta dor num país inteiro, fica dez anos a trabalhar como lenhador, numa região inóspita.
E só em 1995, pouco depois da ascenção ao poder de Kim Jong-il – filho de Kim Il sung e um verdadeiro entusiasta dessa gloriosa campanha dos compatriotas – é que os heróis de 1966 são tratados como tal. O ditador reabilita-os com ofertas de casas na capital Pyongyang e a possibilidade de exercerem cargos técnicos em diversas equipas.
Pak Doo Ik, o dentista no relvado e lenhador fora dele, recebe um apartamento de dois andares e fixa-se como professor de ginástica. Como pertencia ao exército em 1966, só 30 anos depois é que sobe para general pelo golo à Itália. Dos jogadores norte-coreanos desse Mundial, já só sete estão vivos. E todos de boa saúde. Depois de tantos anos escondidos, sem ninguém ouvir falar deles, uma equipa
inglesa de televisão recebeu permissão do ditador Kim Jong-il para entrar na Coreia do Norte e falar com eles. É graças a esse documentário, intitulado "O Jogo das Suas Vidas", que os sete magníficos (jogadores) têm uma rara autorização para sair do país e regressar à cidade de Middlesbrough, onde haviam ficado hospedados em 1966 e onde ganham à Itália. À conta dessa vitória-surpresa, os jogadores italianos são recebidos com tomates no regresso a casa. A reacção da federação italiana é fechar as portas aos estrangeiros (uma cortina de ferro no futebol). E Eusébio, com tudo tratado com o Inter, continua no Benfica. "Já tinha assinado pelo Inter. Encontrei-me com o Angelo Moratti [presidente do Inter], que era um homem cheio de ideias, vigoroso e que adorava futebol, e chegámos a acordo. Mas a Coreia do Norte ganhou à Itália e eles [da federação italiana] fecharam o acesso aos estrangeiros."
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