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Na última Feira do Livro continuei a minha "Missão Beneditina". Em traços largos, consiste em comprar o maior número possível de grandes clássicos da literatura que, no futuro breve, estarão proibidos pelos novos bárbaros da "inclusividade". Falo de autores (homens), ocidentais e brancos.
Passou um ano sobre a tragédia de Pedrógão Grande e sabemos pelos jornais que António Costa não foi convidado para uma homenagem da Associação de Vítimas respectiva. O primeiro-ministro preferiu não "especular" sobre o facto. Mas qualquer pessoa sensata sabe que o gesto da associação é injusto e imperdoável.
Aliás, se dúvidas houvesse, bastaria lembrar a passagem do dr. Costa pela terra no dia do funesto aniversário. O primeiro-ministro assistiu à missa e, à saída, aproveitou o momento (e as câmaras) para declarar que o País não se pode habituar a "esperar pelas tragédias". É preciso dar importância ao que é "efectivamente estrutural" - um pretexto para que o dr. Costa pudesse enumerar as grandes medidas do Governo em matéria de prevenção florestal.
Naturalmente que espíritos pequenos conseguem ver nestas palavras dois insultos ao mesmo tempo. Para começar, um insulto à inteligência média dos portugueses, que tiveram nos relatórios dos incêndios a confirmação dos piores receios: o Estado colapsou e o Governo não soube o que fazer para proteger a vida de 106 pessoas. Que esse Governo seja liderado pelo dr. Costa, eis um pormenor que não ocorreu ao próprio dr. Costa.
Para acabar, esses mesmos espíritos dirão que não é de bom tom aproveitar um momento de luto para fazer campanha política. E que existem lugares mais apropriados para que o Governo se entregue à propaganda.
Em defesa do dr. Costa, relembro ao auditório três coisas que servem de atenuante: primeiro, que o primeiro-ministro foi à missa, deixando Palma de Maiorca para outros carnavais; segundo, que o dr. Costa não responsabilizou os nativos pelo fogo de que foram vítimas; e, terceiro, que ninguém da sua equipa distribuiu merchandising eleitoral à porta da igreja. É um progresso.
Sempre tive um carinho especial por gente psicótica. O facto de ter dois ou três traços obsessivos ajuda à empatia, eu sei.
Um familiar, cujo nome não será revelado, perguntava-me há tempos onde era o meu "local de encontro". Pasmei. Perguntei. Ele esclareceu: o "local de encontro num cenário pós-apocalíptico". A ideia, por estranho que pareça, nunca me tinha passado pelo crânio. "Deves estar a brincar", disse ele, que manifestamente não estava a brincar. Pelo contrário: ele já tinha combinado um local de encontro com a mulher e os três filhos. "Em caso de apocalipse achas que vai tudo ter a casa?" Risos dele ante a minha grotesca ingenuidade.
Depois, caridosamente, ensinou: o "local de encontro" deve ser ao ar livre, de preferência com acesso à água (rio) e alimentação (peixes, mamíferos vários, etc.). Se estiver protegido - muro, cerca, flora cerrada - melhor ainda.
Quando regressei a casa, tentei arranjar um. A única coisa decente que me veio à cabeça foi o Oceanário de Lisboa, mas a minha senhora não deu alimento à paranóia.
Fez bem. Até porque as paranóias são várias. Na última Feira do Livro, por exemplo, continuei a minha "Missão Beneditina". Em traços largos, consiste em comprar o maior número possível de grandes clássicos da literatura que, no futuro breve, estarão proibidos pelos novos bárbaros da "inclusividade". Falo de autores (homens), ocidentais e brancos que revelam nas suas obras o que podemos designar por "literacia básica" e "liberdade criativa".
No meu périplo, lá arranjei Platão (misógino, esclavagista, elitista), Dante (papista), Voltaire (islamofóbico) e Dostoiévski (moralista, reaccionário). Arrumei-os no bunker e, contemplando as espécies, senti-me como Noé na sua barca, momentos antes de abrirem as torneiras.
Claro que, para sermos justos, o dilúvio não será imediato. A coisa vai pingando, aqui e ali. Há sinais.
A Penguin Random House enviou uma carta aos seus autores para os conhecer melhor. O objectivo, afirma a empresa, é ter um catálogo que, até 2025, possa reflectir a população britânica em termos de "etnia, género, sexualidade, mobilidade social e deficiência". O que significa isto?
Significa a aplicação da engenharia social ao reino da literatura: para leitores bengalis haverá autores bengalis; para leitores cisgénero haverá autores cisgénero; para leitores paraplégicos haverá autores paraplégicos - e assim sucessivamente. Só não digo que para leitores analfabetos haverá escritores analfabetos porque essa já é a regra, não a excepção.
O meu primo Manuel - ai, Manel, desculpa! - julga que se safa na mata do Bussaco - ai, Manel, desculpa outra vez! Pobrezinho. Mal ele sabe que o apocalipse não será físico, mas mental.
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