Naquele tempo que não volta a acontecer, os verões tinham mais do que três meses, eram do tamanho da minha infância toda, e cabiam lá bicicletas, jogos de futebol, o cheiro a figueira, joelhos esfolados, ladeiras que pareciam fáceis de subir, e amigos que eram só daquela altura do ano.
HÁ ALGUNS ANOS, quando se vendeu aquela que foi a casa de verão da minha infância, onde a minha avó Maria era rainha de nós todos, ficaram memórias e pouco mais. As casas são quem está dentro delas, e quando essas pessoas desaparecem, as casas também morrem sem saber. Levam com elas os cheiros, os recantos onde aconteceram coisas que não voltam a acontecer, mas que darão lugar a que outras pessoas construam nela memórias novas, e que voltem a chamar casa àquele sítio que já não o é para quem um dia a deixou vazia. Naquele tempo que não volta a acontecer, os verões tinham mais do que três meses, eram do tamanho da minha infância toda, e cabiam lá bicicletas, jogos de futebol, o cheiro a figueira, joelhos esfolados, ladeiras que pareciam fáceis de subir, e amigos que eram só daquela altura do ano, até eu voltar para minha casa e esperar impacientemente que voltassem a ser meus amigos no ano seguinte. Vendeu-se a casa, e dividiram-se as memórias por todos, na esperança que trouxessem qualquer coisa daqueles tempos que não voltam a acontecer. Escolhi trazer de lá duas laranjeiras, por ainda estarem vivas no meio de tudo o resto. Tinha sido delas que a minha avó tinha colhido laranjas, mais tarde os meus pais fizeram o mesmo, e depois eu e a minha irmã, numa repetição que, sem saber, viria a fazer dela uma laranjeira genealógica da nossa família. Uma árvore com 70 anos não se deixa levar sem dar luta. As raízes estão firmes, e agarram-se como podem para não mudarem de terra. Por isso, arrancaram-se com o cuidado a que obriga uma operação delicada como esta, e os buracos enormes que deixaram na casa que era da minha avó, faziam parecer que ali tinha rebentado a terra, disposta a engolir quem se atrevesse a passar por cima dela.
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