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Paulo Lona Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
02.12.2025

Um Ministério Público exausto não combate a corrupção

Em muitas unidades, cada magistrado gere, simultaneamente, mais de mil inquéritos.

Durante anos, a classe política tem repetido que pretende reformar a justiça e reforçar o combate à corrupção. Fala-se de eficiência, de transparência, de prazos mais curtos, de confiança dos cidadãos. Mas quase nunca se fala de quem está, todos os dias, a tentar dar resposta a essas expectativas: os magistrados do Ministério Público e as equipas reduzidas que os apoiam.

Essa omissão não é neutra. É o reflexo de uma incompreensão profunda – ou de uma escolha consciente – de ignorar a sobrecarga, a falta de recursos e a precarização das condições em que o Ministério Público funciona.

O movimento de magistrados de 2025 tornou esta realidade impossível de disfarçar.

A deliberação do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), que redesenhou conteúdos funcionais e regras de preenchimento de vagas, foi tomada sem a transparência, a participação e o respeito pela legalidade que se exigem a um órgão de gestão de magistrados, tentando resolver internamente um problema político.

Ao assumir, na prática, opções de carácter normativo, redefinindo funções e carreiras, o CSMP não só gerou um vasto sentimento de injustiça como colocou em causa princípios constitucionais e estatutários elementares: a igualdade, a segurança e estabilidade profissionais, a especialização funcional, o dever de fundamentação das decisões e a consulta dos interessados.

Não foi, por isso, surpreendente que cerca de três quartos dos magistrados do Ministério Público subscrevessem uma carta-aberta e aderissem a uma greve inédita, em pleno Verão de 2025.

Mais grave do que o conflito institucional é, porém, o que está na base desta revolta: uma sobrecarga estrutural de trabalho que já não é compatível com uma justiça digna desse nome.

Em muitas unidades, cada magistrado gere, simultaneamente, mais de mil inquéritos.

A insuficiência crónica de magistrados e de oficiais de justiça, a ausência de equipas estáveis e de perfis de especialização ajustados à complexidade das matérias, a carência de meios técnicos elementares e a burocracia que recai sobre quem devia estar concentrado na direção da investigação penal traduzem-se em jornadas que se prolongam noite dentro e ocupam, de forma habitual, fins de semana e tempo que deveria ser reservado à família e ao descanso.

A acumulação de serviço, muitas vezes sem qualquer reconhecimento formal, tornou-se regra; a conciliação entre vida profissional e pessoal, uma ficção.

A consequência é evidente: magistrados exaustos, níveis de stress elevados, risco acrescido de erro e, inevitavelmente, uma justiça mais lenta e menos eficaz para os cidadãos.

Ao mesmo tempo, a precarização de lugares – especialmente em áreas que exigem

elevada especialização – compromete a qualidade do serviço público. A rotação acelerada de magistrados, a ausência de uma duração mínima razoável das colocações, a insegurança quanto à trajetória profissional e à permanência em determinadas áreas criam um sistema em que é impossível consolidar equipas, aprofundar conhecimento técnico, construir estratégias de médio prazo.

Fala-se de combate à criminalidade económica e financeira, à corrupção, à fraude no serviço nacional de saúde, à violência doméstica, à criminalidade organizada, mas multiplicam-se soluções que desvalorizam a experiência acumulada e impedem que os processos mais complexos beneficiem de equipas especializadas e estáveis.

A ideia de que se pode exigir mais e melhor ao Ministério Público, sem cuidar minimamente da forma como o serviço está organizado e dos recursos de que dispõe, é uma ilusão perigosa.

Perante este cenário, as propostas aprovadas na assembleia de delegados sindicais do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), realizada em Fátima, nos dias 29 e 30 de novembro, são tudo menos corporativas: são um apelo à racionalidade e à responsabilidade de quem decide.

É indispensável que o próximo movimento de magistrados seja preparado com a antecedência devida, com respeito escrupuloso pela Constituição, pelo Estatuto do Ministério Público e demais legislação aplicável, garantindo transparência, fundamentação séria das decisões (que não se esgote em remissões para tabelas ou estatísticas) e um prazo mínimo que permita a efetiva participação dos interessados.

É urgente mapear, com rigor, as necessidades reais de recursos humanos – magistrados e oficiais de justiça – por tipo de serviço e unidade orgânica, atualizando valores de referência processual que traduzam todo o trabalho efetivamente realizado e projetando, de forma séria, baixas, licenças e jubilações.

E é indispensável aumentar de forma estruturada e sustentada as vagas anuais de ingresso, realizar um curso extraordinário de formação de magistrados e preencher adequadamente o quadro de oficiais de justiça, libertando os magistrados de tarefas burocráticas indevidas.

Um país que leva a sério o Estado de Direito não pode continuar a tratar o Ministério Público como uma espécie de recurso inesgotável e barato, sempre disponível para absorver reformas feitas em laboratório ou discursos inflamados sobre corrupção.

Sem mais magistrados, sem mais oficiais de justiça, sem melhores condições de trabalho e sem respeito pelas regras que regem a organização da magistratura, qualquer promessa de “reforma da justiça” será, no melhor dos casos, mera propaganda.

O que está em causa não é o conforto profissional de uma classe, mas o direito dos cidadãos a um serviço público de justiça que funcione, que seja previsível, que responda em tempo útil e que não seja refém da exaustão de quem o assegura.

Reformar a justiça exige, antes de mais, coragem política para enfrentar esta evidência:

não há combate eficaz à corrupção com um Ministério Público permanentemente em rutura.

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