
Que mundo é este em que deixamos os nossos filhos aos cuidados de outros, ainda que profissionais nessa coisa de cuidar e educar, tantas horas quantas as que um profissional adulto dedica ao trabalho? Quando foi que o trabalho se assumiu como a nossa vida - e não parte dela - para deixarmos de viver, vivendo para trabalhar, entregando os cuidados da nossa casa, as refeições e os nossos filhos a quem deles possa cuidar? Quando foi que, não ter tempo para cuidarmos de nós, ou de quem mais gostamos, passou a ser sinónimo de sucesso, e como foi que, também isso, se transformou num imperativo sem opção?
Há dias o título de uma notícia era muito claro: sobre a relação entre Leis e trabalho, os trabalhadores têm medo de perder o seu emprego e receiam as críticas dos colegas. Continuam a insistir no erro da dedicação abusiva, com horários que contrariam a natureza humana e um volume de trabalho que impede o cumprimento desses horários.
Vivemos para trabalhar ou trabalhamos para viver?
O tema não é novo nem é a primeira vez que o estou a abordar, menos ainda a questão de fazermos o que gostamos, sermos pagos por isso e procurarmos essa abstracção a que chamam felicidade. Felicidade, para mim, é escrever, falar na rádio, partilhar ideias, preparar comida bonita e saudável, fotografar e surfar mas é, principalmente, o sorriso da minha filha e o abraço do meu marido, o carinho da família, a nossa gargalhada conjunta. Um dia, há já algum tempo, fui convidada a hierarquizar vários aspectos da vida, colocando numa lista as coisas e as pessoas mais importantes para mim. E se, muitas vezes, escrevemos ‘filhos’, essa lista obrigava a enumerar um filho antes do outro, o marido antes do filho ou o filho antes do marido. Ainda que tudo isso esteja quase sempre resolvido na nossa cabeça, a ideia de o verbalizar, no papel, é assustadora, tal como a possibilidade de o rever as vezes que quisermos. Pior ainda, afirmá-lo perante outra pessoa. A lista dá-nos uma percepção muito real do que é verdadeiramente importante na nossa vida porque, acreditem, o trabalho não vem (ou raramente virá) em primeiro lugar. Então, porque razão, abdicamos de tempo de qualidade com os nossos filhos por algo que só em parte nos realiza e que hoje é isto e amanhã pode ser aquilo: porque nos pagam melhor, oferecem-nos outras condições, desafiam-nos mais ou porque, simplesmente, gostamos de outra coisa? Vamos gostar de ‘outros' filhos? Não, pois não? Sendo assim, como justificar que as crianças fiquem 40 ou mais horas por semana na creche ou infantário?
Portugal é dos países da OCDE no qual as crianças passam mais horas na escola. São factos. E também são factos, ainda que menos sistematizados, que andamos de ombros curvados, numa resignação que nos acompanha dia e noite, barriga distendida por anos de má postura, sentados em cadeiras pouco ergonómicas e ambientes de trabalho tóxicos a vários níveis: pessoal, físico e emocional. É assim, costumo ouvir. Contudo, não tem de ser assim. É urgente resolver problemas estruturais e culturais que nos obrigam - a todos, empresas incluídas, - a esticar o pé à medida do lençol. O lençol é sempre curto e cortamos no mais básico. Temos um dos melhores países do mundo, com um clima agradável, uma costa que não acaba, montanhas e neve, uma dimensão que nos permite ir de norte a sul num sopro só, recursos naturais de excelência, produção agrícola, vinícola e pecuária de respeito, uma mão de obra que, assim que sai daqui passa a ser espectacular. Temos paz e segurança, infra-estruturas que ligam norte e sul, o interior ao litoral mas, não só acordamos sempre com os pés mais frios do que os escandinavos, temos casas mais frias e escuras e temos, principalmente, níveis de felicidade mais baixos. Há dias lia António Damásio sobre a bancarrota espiritual em que nos encontramos e a verdade é que andamos perdidos entre aquilo que somos, queremos ser e o que nos permitem fazer. O que quero dizer é que, se pararmos numa qualquer rua e olharmos para quem circula, tirando o deslumbramento de alguns turistas, a verdade é que nos encontramos, na maior parte das vezes, tristes e cabisbaixos, numa luta interna permanente para ignorar aquilo que não queremos ver: a vida que desenhamos para nós está, lentamente, a matar-nos.
A vida, na sua essência, é linda mas complicamos demasiado: entre o desenvolvimento tecnológico que nos dá um enorme conforto, segurança, autonomia, garantindo uma vida mais longa e tranquila, também o avanço da tecnologia consegue engolir-nos numa espiral da qual, dificilmente, vamos sair, que faz com que tenhamos de trabalhar mais horas, deixando os nossos filhos entregues à escola mais horas do que as que gostaríamos e contribuindo para criar uma geração que só conhece a palavra família numa média de duas ou menos horas por dia.
Vale a pena?
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