
«Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim»
Tentei com todas as minhas forças interessar-me pela controvérsia da semana, sobre as comemorações oficiais do 25 de Abril, amanhã, no Parlamento. Tentei mas não consegui.
Fazer o habitual cerimonial parlamentar é uma vergonha quando os portugueses estão obrigados a um dever de confinamento que os impede sequer de ir ao funeral dos seus mortos. Não fazer o habitual cerimonial parlamentar seria uma vergonha num Parlamento que continua em funções e trabalha todos os dias, com cuidados especiais para evitar o contágio. Como queiram.
Parece-me certo que faltou em todo este processo mais clareza e mais participação. Dos três ex-Presidentes da República apenas um – Ramalho Eanes – marcará presença, e contrariado. O que me diz que a decisão de Ferro Rodrigues quanto ao formato das comemorações até podia ter sido a mesmíssima, que teve o apoio maioritário dos partidos na Assembleia, mas teria sido muito menos polémica e muito mais legitimada se tivesse discutida em circuito mais alargado, envolvendo os ex-Presidentes, a sociedade civil e as autoridades de saúde – que foram chamadas, mas à última da hora, e aparentemente lá convenceram os partidos a reduzir o número de participantes. Teria sido até uma boa oportunidade para repensar o formato meio bafiento destas celebrações, para alguma coisa mais inspiradora e mais popular (cuidado com os populistas!), mas só quem acha que o Parlamento tem vocação reformista, seja no que for, pode ficar desiludido.
Em vez de se agarrar a oportunidade, teimou-se em fazer uma versão casa vazia (e inutilmente controversa) da mesma pepinada que se faz todos os anos e para a qual ninguém tem pachorra: discursos de partidos que não querem dizer nada, coroados por um discurso presidencial que depois todos nos entretemos a adivinhar o que quis dizer. Sabe a pouco porque é pouco. Há muitos anos.
«Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim»
Mais chocante do que a celebração parlamentar é a noção – legislada em decreto do estado de emergência – de que é possível ir para a rua celebrar o 1º de Maio. Isabel Camarinha, a nova secretária-geral da CGTP, promete que a manifestação se fará com poucos, que ficarão disciplinadamente separados uns dos outros por quatro ou cinco metros (uma festa meio marcial, portanto). Lembra que a pandemia não suspendeu os direitos laborais (o que é seguramente verdade) e que a crise que se abateu sobre os trabalhadores "faz com que a CGTP tenha de levar isto para a rua" – o que já é esticar a corda, sobretudo porque há muitas outras formas de intervenção sindical para além de manifestações de rua. Talvez a CGTP não as conheça, mas isso são outros trezentos.
No Verão vamos ter polícias e fuzileiros a patrulhar as praias, mas para a semana podemos ter uma manifestação da CGTP na Alameda Afonso Henriques? E se eu quiser organizar uma manifestação em favor das sopas de pacote e prometer "acatar as recomendações das autoridades de saúde", posso? Ou aceitamos que agora o direito de manifestação está sujeito a aprovação governamental? Das duas uma: ou há condições para as pessoas saírem à rua, desde que respeitando precauções específicas – e então há condições para levantar o dever de confinamento e restabelecer a liberdade de reunião e manifestação que foram suspensas pelo estado de emergência – ou não há, e isso vale para todos. Ou será que o vírus está filiado na Intersindical e firmou pacto de não agressão com o povo trabalhador?
Talvez o nosso Presidente constitucionalista nos possa explicar porque é que o direito constitucional de reunião e manifestação está limitado, mas não para a CGTP. Talvez o Governo me consiga explicar porque é que a cidadã Isabel Camarinha tem mais direitos constitucionais do que eu. Talvez alguém me consiga convencer de que não entrámos numa fase autocrática em que o Estado proíbe ou autoriza o exercício de liberdades fundamentais apenas a quem tenha poder de influência; ou a quem celebre o que o Governo entende que pode ser celebrado. Tudo isto é muito sombrio, muito pouco democrático e muito perigoso.
«Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar»
Poderes absolutos dão asneira – e de asneiras já temos tido mais do que a conta.
É evidente que a centralização de poderes é inevitável num estado de emergência, mas é particularmente perigosa num país com uma cultura de poder já de si própria centralista e autocrática. Gerir estes riscos exige transparência e escrutínio, que continuam a faltar.
É aberrante e incompreensível que, um mês e meio depois dos primeiros pedidos de informação, continuem a faltar dados essenciais de que os investigadores precisam para combater a Covid-19. Mais de um mês depois da primeira carta aberta de cientistas portugueses pedindo que fossem disponibilizados os dados "com a maior brevidade (horas e não dias)", o Governo arranjou uma solução muito portuguesa: um formulário para os cientistas preencherem a pedir um leque limitado de informação. Que tem depois como resposta, não a informação pedida mas a exigência de mais papéis: um parecer do instituto de investigação onde trabalham, um protocolo de investigação e um parecer de uma comissão de ética. Se há vidas a salvar, elas que esperem. A atitude do Ministério da Saúde é de uma negligência atroz, um compromisso com a opacidade que só se percebe pela relutância em deixar exposta (mais do que já está) a total desorganização dos serviços e a ausência de dados fiáveis sobre a pandemia. E em vez de assumir o problema e trabalhar para resolvê-lo, o Governo oculta, arrasta, manobra.
Ainda assim, diga-se o que se disser de Marta Temido, reconheça-se isto: se a ministra da Saúde tivesse o nível de competência da ministra da Cultura já estaríamos todos mortos. Depois do fiasco da TV Fest – uma ideia peregrina de apoio à cultura que, em vez de definir e aplicar política pública, se propunha simplesmente distribuir um milhão de euros pelos amigos e pelos amigos dos amigos –, Graça Fonseca apresentou finalmente o seu plano de apoio à comunicação social. Em que consiste? Numa espécie de TV Fest publicitária: um compromisso de gastar 15 milhões de euros em publicidade institucional.
A Plataforma de Media Privados já veio dizer que é pouco, mas é sobretudo a distribuição deste bolo que me preocupa. A lei da publicidade institucional estabelece diretrizes para a repartição equitativa do investimento, mas ainda assim há muita margem para o Governo escolher favoritos. A democracia não sobrevive se a imprensa morrer, mas também não se aproveita se a imprensa se tornar num zombie – um cadáver ambulante, incapaz de qualquer préstimo social depois de capturada pelo subsídio público. Não há soluções fáceis nem políticas de emergência sem risco, mas o secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media – conhecido até agora apenas pelos conflitos de interesses que trouxe para o Governo – claramente não tem o trabalho de casa feito em relação a um sector em dificuldades há anos.
A resposta mais simples – os cidadãos têm de valorizar o jornalismo e estar dispostos a pagar por ele – é dificilmente aplicável em tempo de crise: o consumo de informação subiu de forma brutal, mas a publicidade caiu a pique (em quarentena não há nada para vender) e uma grande parte dos consumidores está a perder rendimento ou com receio fundado de perdê-lo. O layoff é má ideia, porque precisamos do jornalismo hoje mais do que nunca. O ideal seria conceder subsídios públicos que mantivessem os volumes de faturação nos valores habituais de cada empresa de media – ou pelo menos limitassem as quebras – de modo a comprar tempo para uma discussão mais estrutural sobre o futuro da comunicação social e os modelos de negócio, que o Presidente da República tem tentado promover mas da qual o Governo se tem alheado.
«Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim»
O grande risco da pandemia, para além dos impactos de saúde pública, é o risco de reforçar os poderes fortes e enfraquecer mais ainda (ou acabar definitivamente com) os poderes mais fracos. À saída disto arriscamos-nos a ter uma comunicação social ainda mais fragilizada e obediente, uma sociedade civil ainda mais anímica e alinhada, um setor empresarial ainda mais subsídio-dependente e uma uma comunidade científica ainda mais excluída da discussão pública e do desenvolvimento de soluções. A vitória sobre a Covid-19 (que virá, mais tarde ou mais cedo) será a nossa derrota se, em vez de ser a vitória da sociedade, for a vitória do Estado – deste Estado centralizado, opaco, de circuito fechado, distante dos cidadãos e promíscuo com os negócios.
Garantir a resiliência do país ao vírus é começar já a planear onde faremos ruturas estruturais para reequilibrar os poderes e garantir que saímos daqui uma democracia fortalecida, e não tutelada. Caso contrário, continuaremos a ter sessões parlamentares do 25 de Abril, e de tudo o resto, rodeadas ciclicamente de polémicas estéreis. Continuaremos a ter políticos a levantar controvérsias superficiais para nos distrair dos problemas profundos. Continuarmos a ter muito espalhafato na imprensa (que sobrar) e corporações a manifestarem-se. Teremos é uma democracia pouco merecedora de celebrações.
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