
Ando pior que estragada, que imaginem que se me avariou o televisor! Já vai para uma semana que ando desligada de tudo. E quem não vê é como quem não sabe. No mundo de hoje, não podemos estar assim estúpidas. Eu por acaso agora já só acompanho cinco novelas mas, mesmo assim, faz-me falta. Então no domingo, ai meu Deus, estava mesmo com a neura, que eu aproveito sempre para passar duas cestas de roupa enquanto vejo as galas. E ainda dizem que a televisão matou a família, que as pessoas já não conversam. Olha, a televisão salvou mas foi a família. Por menos a minha, que eu, sem aquilo, sobe-se-me uns nervos por mim a cima que não sei como é que não matei o marido e o meu mais velho, e tive que me morder para não atirar dois númaros da revista Bimby à cabeça da minha nora, que já estamos em Janeiro e ela ainda não se cansou de mostrar as fotografias das férias em Torremolinos que tem no telemóvel...
Isto só eu... A última vez que estive sem televisor, parece que estou a ver, foi em mil nove e noventa e três. Caredo, nem quer que me lembre! E, nessa altura, ainda tive alguma sorte, que houve aqui uma novela na escada, que não vos digo nem vos conto. Ou melhor, conto mesmo, que eu hoje só me apetece é falar. Atão foi assim: a do terceiro esquerdo também é dona do terceiro direito, que era onde morava o paizinho, que já lá está, no jardim das tabuletas. No Alto de São João, vá. E ela, como ficou com a casinha, aluga-a, pois claro. E isto são casas muito boas, cinco quartinhos, um deles em suite, com casinha de banho privativa e aquilo que a gente chamava roupeiro e elas agora dizem clósete ou que é, e que é assim uma espécie de arrecadação, só que pá roupa. E depois tem duas boas salas, com comunicação e que lhes dá o sol o dia quase todo, quando há, e mais uma casinha de jantar com porta pá cozinha. E ainda tem um quartinho que era dantes pás criadas. Ah, e duas muito boas varandas, uma pá frente e outra pa trás. E tudo boas áreas, claro. Ai caredo, parece que trabalho na REMAX...
Bom, e o que é sucede? A mulher, a senhora, vá, quis alugar a casa a um casal de indianos que tinham uma loja muito boa de indianos, que era como a gente dantes chamava a essas lojas. E faz sentido, não é? Mas isto deu cá um escândalo aqui na escada! Fizeram uma reunião de condómitos e a do quinto (que também é dona do direito e esquerdo) levantou um pé de vento, em que não. Onde é que já se viu, virem aqui pó prédio, uma gente que até é disso do Maomé, e que é só rezas o dia todo, e com uma comida que aquilo é um cheiro que não se pode, enfim, disse das últimas. A mulher tem a mania que é melhor que os outros, desde que eu estou aqui que ela é assim, já não é defeito é feitio. Quantas vezes passa por mim, e nem fala. Olha, é pó lado que eu durmo melhor.
Bom, isto deu-se, foi uma algazarra, até a do sexto esquerdo, coitadinha, que eu em trinta anos só a vi cinco vezes, que está agarrada a uma cadeira de rodas por uma queda que deu em miúda, e que nunca sai de casa, fez questão de ir à reunião, dizer que a do quinto não tinha coração, e que a gente tem de respeitar as pessoas, e que mal é que o tal casal indiano lhe tinha feito?
Mas isto há vinte e cinco anos era tudo diferente, não se falava de certas coisas e a senhora fez tanto barulho, bateu tanto o pé, que a do terceiro desistiu, para não ter mais dores de cabeça, que é mesmo assim. E lá teve de dizer ao senhor Rachide, parece que era assim, que desculpasse muito, mas que não lhe podia alugar a casa. O homem deve-se ter sentido, que quem não se sente não é filho de boa gente. Mas nunca comentou mais nada. A gente continuou a gastar lá da loja dele, e ele sempre com boa cara.
Ora dizem que Deus não dorme, e não dorme mesmo, às vezes faz é assim umas valentes sestas. Não tem um ano depois desta história, a neta lá da senhora do quinto cai à cama com uma daquelas doenças de levar as mãos à cabeça. Correu seca e meca, mal comparado, e nada. Não lhe davam seguimento à coisa e a menina sempre pior. Chegámos mesmo a pensar, ah pois... pois foi, coitadinha. Isto claro que se constava tudo no bairro, e um dia, pois não me vem o senhor Rachide bater à porta a perguntar em que andar morava a avó da menina doente? Para abreviar: pois não é que o irmão era médico, lá na Inglaterra, e que era um grande especialista naquela doença, que eu não sei dizer qual era, que mal sei o nome das minhas, quanto mais as dos outros, era qualquer coisa que dá por dentro das pessoas, e que se tinha oferecido pa ver a menina. O que é certo é que, desesperadas, lá a levaram ao médico indiano, a Londres, e que a curou. Hoje é uma mulher feita, graças a Deus, feliz, e só não tem um bom emprego porque foi para um curso de letras. Não se pode ter tudo.
E desde essa altura, o senhor Rachide e a mulher vêm jantar todos os meses cá a casa da avó da menina, lá uns pratos indianos. E mesmo que sejam precisos dois dias de lixivia pura na escada para sair o entranhado do cheiro, que a cozinha indiana leva muito condimento, já se sabe, fico contente que tenha acabado tudo bem. E foi uma grande lição para todos. Sobretudo para o senhor Rachide, que se tivesse prestado mais atenção aos estudos, como o irmão, era médico em Londres em vez de vender sabonetes e champons nas Avenidas Novas.
Mas cada um é pró que nasce. Nem sei a propósito de quê é que me lembrei desta história. Mas olhem, ficou-me sempre esta ideia de que a gente, sem querer, ou por querer, às vezes somos maus para as pessoas que se fosse ao contrário eram boas para a gente. E a gente o que somos todos é mas é pessoas. E quem não tem cão um dia é do caçador, como dizia a minha avó.
E prontos, ando assim triste. Nem sei de que é... Deve de ser da chuva e disto de não ter televisão. Que neura, pá.
Com licença.
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