
Nos últimos dias o país, envolto no manto do mediatismo, esteve suspenso, a viver plenamente a última novela da vida real: o recém-nascido encontrado num ecoponto por um sem-abrigo.
Não espanta. Tal como qualquer novela, esta história tem os ingredientes e os personagens perfeitos. O recém-nascido que é deixado sem qualquer agasalho no lixo e que sobrevive graças à intervenção de um sem-abrigo que caiu nas ruas por perder o trabalho em consequência de problema de saúde que o SNS não resolveu. A mãe, jovem de 22 anos, também sem-abrigo, detida e presa quase de imediato, que teve o parto sozinha, na rua e deixou o bebé no lixo. Não faltam os actores secundários, aqueles que no local socorreram o bebé, aqueles que o acolheram e trataram no hospital o próprio Presidente da República que visitou o sem-abrigo na rua onde este vive e foi, com ele, dar uma espreitadela ao local onde o bebé foi encontrado.
Nenhum argumentista faria melhor.
A situação não é novidade. Todos aqueles que passam as suas vidas nos Tribunais têm noção que histórias semelhantes, com contornos mais ou menos chocantes, sempre ocorreram. A diferença é que esta situação concreta mereceu os holofotes da comunicação social e tornou-se mediática.
Tal basta para que todos se considerem com o direito de julgar moralmente e criminalmente as condutas de cada um. Para que todos tenham criado as suas próprias convicções inabaláveis. Não interessa que apenas se conheçam os contornos gerais do caso – e através daquilo que é transmitido pelos jornais e televisões. Certo é que cada um já decidiu que crime foi praticado e qual é a decisão correcta que o Tribunal terá de proferir.
De momento, numa fase inicial do processo, e em termos processuais apenas se sabe – e de acordo com o que foi divulgado pela comunicação social – que a mãe da criança se encontra indiciada pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada. Tal decisão, tomada por quem sabe efectivamente quais os contornos já conhecidos do caso, tem sido alvo de forte apoio por aqueles que já decidiram que é óbvio que esse é o crime praticado e, por outro lado, de forte contestação por aqueles que já têm a certeza que o crime é outro e de muito menor gravidade (crime de infanticídio tentado ou mesmo o crime de exposição ou abandono). Nenhuns deles sabem em que circunstâncias concretas os factos ocorreram desconhecendo o que levou a mãe a adoptar o comportamento que supostamente adoptou.
E não se diga, a propósito dessa questão, que nenhuma mãe deixaria o seu filho recém-nascido no lixo se não estivesse perturbada. Existem mães, imputáveis e sem padecerem de qualquer tipo de patologia, que não gostam dos filhos, não os querem e que os matam. Tal como há mães que o fazem em situação de perturbação mental e que são efectivamente inimputáveis. Como em tudo, tudo depende do caso concreto.
Os juízes que vierem a decidir este caso não vão decidir com base naquilo que as notícias divulgaram mas sim tendo em conta os factos. Naquilo que se vier a apurar que aconteceu, nas circunstâncias concretas que existiam e que se verificaram quando os factos ocorreram. Aqui, em Tribunal, os factos não se adaptam às conclusões prévias a que cada um chegou, pelo contrário são eles – factos – que permitirão extrair e sustentar essas conclusões.
A decisão será tomada, com tranquilidade, com a razão, sem o calor da emoção do momento, mas com a humanidade que deve existir em todas as decisões judiciais.
E só aí se saberá o que aconteceu.
Até lá, não nos podemos esquecer que não estamos a falar sobre personagens de uma qualquer novela mas sim sobre pessoas reais, da vida real. Em causa estão duas vidas, dois seres humanos. Cada vida é uma vida, sem comparação com qualquer outra. E o julgamento, ainda que moral, pressupõe o conhecimento da situação concreta.
Também eu fiquei chocada com tudo o que rodeia este caso. À semelhança de todos, ainda não sei o que aconteceu nem porquê mas fiquei consciente de que no meu país existe um elevado número de sem-abrigos que, às vistas de todos nós, vivem sem ser vistos numa zona central da capital, que no meu país existem bebés que são deixados no lixo e que existem jovens adultas que vivem por aí, sem ninguém perceber, sem terem quem as apoie e que têm que dar à luz os seu
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