"Quando a tirania é lei, a revolução é ordem". A frase, forte e contundente, foi vista durante aquela que foi definida como a maior manifestação no Chile desde a queda do ditador Augusto Pinochet em 1990 e que juntou, a 25 de outubro, mais de um milhão de pessoas nas ruas de Santiago. O Chile é apenas um dos países da América Latina a viver um período interno conturbado, de contestação violenta, de protestos sem vim à vista, com a população a exigir mudanças profundas nas estruturas política e social. Na Bolívia, outro exemplo, acusações de fraude eleitoral geraram uma onda de protestos que acabaram com o exílio do presidente, Evo Morales, que se queixa de ter sido vítima de um golpe de estado. Em ambos os países, houve mortos.
Equador, Venezuela, Peru e Brasil são outros dos países da região – que une 33 países, cerca de 630 milhões de pessoas e governos que vão desde a esquerda autoritária à extrema-direita - que passaram já este ano ou estão a passar por grandes protestos. Uma onda de problemas internos com muitos pontos em comum, nas exigências e nos antecedentes, e uma frente de luta diferente: os jovens. "São os mais novos que estão nas frentes de batalha, sejam adeptos de que doutrina for. Não são os reformados que carregam contra a polícia ou a guarda", destacou o comentador político Nuno Rogeiro em declarações à SÁBADO.
Muitos deles são filhos de uma classe média que sofre ainda as consequências da crise financeira de 2008/2012, que também levou os países da região à estagnação económica e, em alguns casos, à recessão. No Chile, por exemplo, os protestos começaram com o aumento do bilhete de metro. Um bilhete para a rede, que é utilizada diariamente por três milhões de passageiros, passaria a custar mais 30 pesos (0,04 euros), ou seja, 830 pesos (1,02 euros). Foi o suficiente para que a cidade irrompesse em protestos e o país ficasse em estado de emergência. Depois de uma primeira resposta policial repressiva, o presidente, Sebastián Piñera, retrocedeu na medida e avançou mesmo com um pacote que pretendia responder a algumas das exigências da população. Agora, depois de semanas de protestos violentos, o governo e a oposição concordaram com uma consulta popular à constituição promulgada durante a ditadura de Augusto Pinochet.
Joker, do cinema às manifestações em todo o mundo
Joker saltou das telas de cinema para o meio dos protestos contra o governo que se vivem em vários países. No Líbano, Chile, Hong Kong, Iraque e na Bolívia, foram vistos manifestantes com máscaras ou pinturas faciais do arqui-inimigo de Batman, ou a personagem da DC é tema de arte urbana.
Mas nada parece parar a vontade dos chilenos de continuar a protestar, motivados pela falta de expectativas. "Perante a possibilidade de oportunidades, a desigualdade social é tolerável", explicou à SÁBADO o professor universitário especializado em questões de segurança internacional Filipe Pathé Duarte. Quando essas perspetivas são defraudadas e não há expectativas de mudança, "a classe média emergente olha para a desigualdade social e revolta-se".
Também Pathé Duarte sublinhou o papel dos mais jovens da onda de turbulência. Estes protestos, defendeu, "são uma espécie de payback [ndr: dar troco, em tradução livre] da geração que era criança e/ou adolescente na altura dos protestos" de 2010/2011, devido à crise provocada pela falência da Lehman Bothers, em 2008. Ou seja, estes movimentos "não deixam de ser uma consequência dessa crise e uma subsequência desses protestos", têm "uma ligação ténue" a movimentos como os Indignados e os Occupy Wall Street.
Se a componente económica dos protestos é um fator fundamental para explicar estes movimentos, vê-la como justificação única seria redutor. "Há uma raiva pública perante a política, o descontentamento perante as elites políticas e os casos de corrupção", disse o também professor universitário. No Brasil, a investigação Lava Jato e a detenção do antigo presidente Lula da Silva – entretanto colocado em liberdade – foram um dos catalisadores da eleição de Jair Bolsonaro. "Os movimentos populistas nascem organicamente e a sua narrativa e retórica apontam para a incapacidade das estruturas de poder em resolver os problemas", reforçou. As más gestões e maus investimentos, os colapsos empresariais e a má distribuição de recursos tornam-se, à vista dos povos, consequências desses conluios. "As acusações de corrupção, nepotismo e peculato estão presentes em todos" estes casos atuais de insatisfação e protestos, defendeu igualmente Nuno Rogeiro, colunista da SÁBADO, que considera que não é possível justificar o que se passa na América Latina com a questão das ingerências internas. "O que não quer dizer que não haja interessados externos da desestabilização de cada país…", assumiu.
As redes sociais, as copias e a publicidade
A América Latina está longe, porém, de ser a única zona do globo a viver um período de convulsão. Hong Kong e a Catalunha – duas regiões a lutar pela autodeterminação e independência – tornaram-se modelos copiados também em países como o Iraque, Irão e Líbano. Com a ajuda, não inédita mas reforçada, das redes sociais, como lembram os dois especialistas ouvidos pela SÁBADO. "Este efeito de copycat [ndr: imitação] tem em comum um abuso óbvio das novas tecnologias de informação e comunicação", considerou Pathé Duarte, lembrando que as redes sociais "permitem a existência de estruturas não verticalizadas, sem cadeias de comando, fluidas e dinâmicas". "Torna a atuação das autoridades muito mais difícil", alertou.
Los Prisioneros, a banda rock que inspira os protestos no Chile
A dança dos que ficam é a música mais cantada pelos milhares de chilenos que saíram as ruas para protestar contra as desigualdades no país. Ninguém nos quis ajudar de verdade, ouve-se nas ruas de Santiago. - Mundo , Sábado.
O uso destas ferramentas é tão essencial que, relembrou Nuno Rogeiro, "em sítios como o Iraque ou o Irão, a primeira coisa que acontece é a interrupção dos circuitos de Internet". "Esta proporciona a possibilidade de previsão, comando, controle, propaganda e planeamento dos diversos grupos de contestação", acrescentou. No caso da Catalunha, o grupo independentista Tsunami Democràtic criou mesmo uma aplicação para smarthphones com o objetivo de coordenar o que definiram como acções de desobediência civil. As tecnologias de informação permitem igualmente uma espécie de internacionalização das lutas, que ultrapassa o facto de vários países em ebulição serem vizinhos. "Muitos grupos de diversas cores políticas possuem aliados e adeptos estrangeiros, criam causas comuns e aproveitam o facto de, em estudo ou lazer, ser hoje fácil viajar", explicou o jornalista.
Para Nuno Rogeiro, esta relação entre protestos passa também pela "publicidade" aos mesmos, que é "ampliada" pela comunicação global. "Em quase todos esses países – a exceção é o Iraque - os media internacionais estão em peso a cobrir o que se passa, hora a hora, minuto a minuto, em meios onde a comunicação local já é intensa. A febre da rua também se propaga pelo exemplo, pelo símbolo e pela imagem", defendeu: "Uma manifestação resguardada, num lugarejo obscuro de nenhures pode ser apocalíptico no tom, mas se não houver repórter de imagem, ninguém liga."
Como será o futuro?
A duração dos protestos, disse também, é difícil de prever. "Ninguém sabe quanto demorarão os estados a restabelecer a normalidade, e ninguém conhece quanto tempo estará a rua disposta a combater", explicou Nuno Rogeiro.
Além disso, é preciso também analisar como é que os sistemas vigentes vão conseguir lidar com o que se está a passar. Filipe Pathé Duarte lembrou à SÁBADO que, em 2010/2011, "os protestos aconteceram maioritariamente em sociedades abertas, em democracias liberais que, com o tempo, acabaram por absorver os movimentos sociais", sendo o Ciudadanos e o Podemos, em Espanha, exemplos disso. Agora, defendeu, "o perigo é que não se está a falar de democracias que tenham facilidade em absorver estes movimentos".
Evo Morales, de porta-voz dos ecologistas a vilão ambiental em dez anos
Os números são assustadores. De janeiro até ao primeiro dia de setembro deste ano, o bioma (conjunto de ecossistemas) Amazónia acumulou 47.804 focos de incêndios. Parte deles, aconteceu na Bolívia, um dos nove territórios por onde passam os cerca de cinco milhões e meio de quilómetros quadrados da maior floresta tropical do mundo, com a maior biodiversidade registada numa área do planeta.
"Neste momento, a América Latina está entre o conflito e a violência", sublinhou ainda, sendo que conflito no caso define a vontade de quem está em baixo de subir na estrutura social. Do ponto de vista internacional, os problemas em países como a Venezuela, Chile ou Bolívia trazem alertas económico-financeiros, pois "são países exportadores de commodities [ndr: bens comuns] importantes para a economia global", como o petróleo, o cobre e o lítio.
"O maior desafio da comunidade internacional", acrescentou o especialista em questões de segurança internacional, "é perceber onde está a legitimidade". E o que poderá ser feito? "A comunidade internacional estará o mais alerta possível, mas com a menor ingerência possível nas situações a não ser em casos de violência ou em que esta se torne mais presente".
Para poder adicionar esta notícia deverá efectuar login.
Caso não esteja registado no site da SÁBADO, efectue o seu registo gratuito.
Marketing Automation certified by E-GOI
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados. É expressamente proibida a reprodução na totalidade ou em parte, em qualquer tipo de suporte, sem prévia permissão por escrito da Cofina Media S.A.
Consulte a Política de Privacidade Cofina.