Quando, no início deste mês de novembro, Sônia Guajajara pisou o Teatro Rivoli, no Porto, ao lado do artista Ernesto Neto, para falar da luta pelo território e a destruição da Amazónia, deixou a plateia do Fórum do Futuro a gritar em uníssono "demarcação já" e "sangue indígena, nenhuma gota a mais". Ao longo de mais de uma hora e meia de conversa, a líder da Associação Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que nas últimas eleições se tornou a primeira mulher indígena pré-candidata a vice-presidente da República, ao lado de Guilherme Boulos do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), falou do regresso à ancestralidade como garante da sustentabilidade futura, atacou as atitudes "criminosas" do Governo de Jair Bolsonaro e cobrou de Portugal a necessária reparação histórica "para fazer justiça com os povos indígenas"."As políticas de exploração são as mesmas de 1500. Somos obrigados a reagir porque não somos obrigados a aceitar nenhuma política injusta", disse a certa altura, com imagens de fundo da primeira marcha de mulheres indígenas nas ruas de Brasília, organizada em Agosto deste ano. A reacção, neste momento, passa por uma digressão de 35 dias pela Europa com outros líderes indígenas e tem como principal alvo o Tratado de Livre Comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Apanhamos Sônia Guajajara a meio do trajecto, já na Suíça, para uma conversa no exacto dia em que Lula da Silva saiu da prisão. Assunto forte para iniciar a entrevista.
Lula saiu da prisão. Isso é uma boa notícia?
A luta por Lula livre virou uma luta mundial, pela democracia no Brasil, pelo respeito dos direitos humanos, pela justiça. É claro que todos nós estamos solidários e contentes que ele tenha sido libertado.
É um acontecimento importante para fortalecer a luta pela demarcação dos territórios indígenas?
A nossa luta é histórica, a nossa luta começou em 1500 quando os portugueses chegaram e invadiram as nossas terras. E como esse problema nunca foi resolvido, temos na demarcação dos nossos territórios a nossa principal bandeira, independentemente de quem esteja ao nosso lado.
Essa demarcação fica ameaçada com a assinatura do Tratado de Livre Comércio entre a UE e o Mercosul?
Neste momento estamos a actuar fortemente para que esse acordo não seja assinado nos termos actuais, porque não dá nenhuma garantia de que os direitos humanos, os direitos ambientais e dos povos indígenas sejam tidos em consideração, pelo contrário. O acordo com o Mercosul, ao promover a isenção de taxas e de impostos, vai facilitar os negócios da Europa com o Brasil e com isso vai forçar ainda mais a entrega dos nossos territórios para a exploração. Para nós isto é uma ameaça extra. Bolsonaro já disse que não ia demarcar mais territórios indígenas, permitindo assim a exploração dos territórios pelas empresas.
Em Portugal, em particular, a Sônia alertou para o caso do grupo Vila Galé que pretende construir um resort de luxo no sul da Bahia, no território de Tupinambá de Olivença.
O grupo Vila Galé é uma empresa portuguesa que está no Brasil a influenciar e a pressionar o Governo para que não se demarque esse território indígena em benefício da sua obra. Acho que é o momento de todas as pessoas que são solidárias com a questão indígena e que estão do nosso lado se posicionem contra mais esta violação de direitos. É mais uma prática de lotear os nossos territórios e reproduz as mesmas práticas coloniais de antigamente.
Em comunicado, o grupo Vila Galé disse que "não existem indígenas nesta área nem quaisquer vestígios dos mesmos no local" e que "só após aprovação formal do Presidente da República é que se poderá falar em terreno indígena". Portanto, a última palavra é de Jair Bolsonaro.
Bolsonaro nega a presença indígena em muitos territórios. Ele nega a presença para precisamente negar os territórios. E com isso ele quer mudar também os modos de vida das pessoas e adoptar um padrão único de produção como se nós fossemos obrigados a ser também grandes produtores. Isso é mais uma das grandes mentiras que Bolsonaro tem pregado durante estes mais de dez meses de Governo. Nesse território há sim indígenas, é histórica a presença do povo de Tupinambá nesse local, há 519 que estão ali. E quando o Presidente afirma que nesses territórios não há presença indígena para atender à pressão de uma empresa, isso é no mínimo uma atitude criminosa. Não é só ofensivo, é criminoso negar isso.
Ainda sobre o Tratado de Livre Comércio entre a UE e o Mercosul, a Comissária Europeia do Comércio, Cecilia Malmström, afirmou em Julho que este tratado poderia não salvar a Amazónia, mas que era importante para comprometer a Argentina, o Brasil, o Uruguai e o Paraguai com as metas do Acordo de Paris para o Clima. Concorda com esta afirmação?
Na verdade ninguém quer abrir mão dos seus negócios para proteger o meio ambiente. Os empresários e todos os que estão envolvidos neste Tratado estão muito interessados em abrir o livre comércio para a importação e para a exportação. Para eles não interessa se isso vai aumentar mais o desmatamento, se as pessoas vão ser expulsas das suas terras. Para nós, indígenas que somos impactados todos os dias pelo agro-negócio, pelas indústrias de mineração, pelo desmatamento, é crucial falarmos disso. Agora é preciso, tanto os meios de comunicação como a restante população, observarem qual é o lado que garante a biodiversidade preservada e qual o impacto dessa biodiversidade preservada na vida das pessoas. As pessoas têm que ter o mínimo de sensibilidade para fazer as suas análises e olhar onde é que está a protecção ambiental: nos territórios indígenas ou nos fazendeiros do agro-negócio? Não é preciso dar uma resposta se sou a favor ou contra, basta que as pessoas olhem e vejam as práticas de quem está a proteger e de quem está a destruir para tirarem as suas conclusões.
Os povos indígenas representam actualmente 5% da população mundial e essa percentagem é responsável pela protecção de 82% da biodiversidade do mundo. Segundo dados da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), no Brasil e em todo o mundo, entre 70% e 80% dos alimentos são produzidos em pequenas propriedades rurais. No Fórum do Futuro, a Sônia referiu estes números para contrariar a posição do Governo de Bolsonaro, que defende que o responsável por alimentar o povo brasileiro é o agro-negócio.
O próprio Governo e as empresas querem manter as pessoas ignorantes, para elas acreditarem que são eles que estão a salvar o mundo, quando na verdade são eles os maiores destruidores. Ele prega isso na televisão, na imprensa para manter a população ignorante em relação a estes assuntos. Isto acaba por ser uma luta desigual, é o poder político e económico contra os factos e contra os povos originários. É uma disputa muito injusta.
Actualmente, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há 305 etnias e 274 línguas indígenas identificadas. Como é que se posicionam perante esta "luta desigual"?
Nós vamos dando visibilidade às mudanças climáticas que estão a acontecer no mundo e vamos encontrando sempre pessoas que percebem que o modelo económico actual está todo errado. Para nós, esses encontros com pessoas que estão preocupadas com o futuro é o que fortalece a luta para continuar a acreditar que ainda é possível mudar as consciências.
Repensar o modelo sócio-económico actual passa por um regresso às raízes, pelos saberes ancestrais?
Claro, com toda a certeza. A luta que fazemos é uma luta política para romper com este modelo económico actual que é baseado na exploração, na grande escala de produção de monoculturas. Tudo isso tem um impacto directo nas alterações climáticas. A luta que fazemos para romper com esse modelo é o que realmente pode salvar o planeta e evitar o aumento da temperatura em dois graus, como se tem falado. Mas ainda poucas medidas foram adoptadas para evitar isso.
Já fizeram alguma aliança concreta nesta digressão de 35 dias pela Europa?
Estamos agora na Suíça, no nono país. Vamos amanhã para França, depois Inglaterra e Espanha. Temo-nos encontrado com várias lideranças: políticas, representantes parlamentares, movimentos sociais, com universitários. Estamos a formar uma rede por onde temos passado para fortalecer a luta de todos os que acreditam que ainda é possível a mudança. As pessoas em cada país têm-se comprometido a pressionar nacionalmente os parlamentares para assumirem compromissos e medidas mais responsáveis, para fazerem leis que garantam a rastreabilidade da cadeia de produção e que punam as empresas que não as cumpram. Embora nós não levemos nenhum resultado concreto na mão, deixamos uma semente plantada em cada país para que possamos continuar a regá-la em conjunto.
Que acções têm planeadas quando regressarem ao Brasil?
Há uma reunião de planeamento do movimento indígena no próximo ano, em articulação com outros movimentos. E daí vamos seguir para a COP, a conferência do clima que ia acontecer no Chile e que agora vai ser em Madrid. Estamos a coordenar uma acção global para que no dia 7 de Dezembro estejamos lá em defesa do clima.
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