Há poucos temas da política europeia tão susceptíveis de reunir consensos entre comentadores como a exposição e denúncia do "défice democrático" na União Europeia. É algo que leva infalivelmente a previsíveis acenos de cabeça, que nos associa espontaneamente às nobres causas e à companhia das boas consciências. Em mais um ensaio da Fundação Francisco Manuel dos Santos, cuja colecção tenho procurado acompanhar aqui nesta página, Catherine Moury, professora de estudos europeus na Universidade Nova, resolveu retomar esta discussão.
O livro abre com uma lamúria sobre o desfecho da "experiência Varoufakis", cuja factura duríssima foi paga pelos gregos comuns que não fazem vida da actividade académica. A lamúria dá o tom ao livro, incluindo a sua divisão entre "maus" e "bons" da proverbial "fita" que foram os últimos 6 ou 7 anos da vida europeia. Há os "credores" (os maus, evidentemente) e os restantes, que são generosos democratas e acreditam na irmandade dos povos.
A que temos é uma Europa iníqua, cobarde e desesperada. A autora não "gosta" dela. Mas diz que é possível gostar. Agora, é bom que o amor chegue depressa porque a extrema esquerda e a extrema direita podem antecipar-se aos acontecimentos. Depois do caldo entornado não haverá lamúrias que nos salvem.
O livro diz apresentar duas teses diferentes. A primeira é a de que para haver mais democracia na EU é preciso aumentar as competências do Parlamento Europeu. A partir daqui, retrata a evolução para uma maior democraticidade na EU nas últimas décadas até hoje que se deveu à "ambição dos eurodeputados" – esta última indicação fica ao abrigo da caridade. Se o Parlamento Europeu ainda tem poucas competências, então está aí explicado o "défice democrático" da Europa.
A segunda tese é a de que a "crise das dívidas soberanas" gerou um retrocesso democrático – um retrocesso "dramático", nas palavras da autora. Para Moury, fora do quadro formal da União Europeia não se tomam decisões, sob pena de destruirmos a democracia. São tudo considerações interessantes, mas que cometem o erro fatal do comentário aos acontecimentos e decisões políticos: não reconhecer a responsabilidade, a limitação de escolhas e o imperativo do tempo a que estão sujeitos aqueles que têm de tomar decisões no "aqui e agora".
Talvez pudesse ter ocorrido à autora que o "quadro formal" que a União Europeia possuía nas vésperas da crise era de tal modo deficiente que uma estrita sujeição ao mesmo teria feito da dita crise um acontecimento muito mais terrível do que aquilo que foi.
O "quadro formal" no livro tido por última fronteira da democracia era no início da crise um espartilho que teria atirado a Europa para uma passividade devastadora, com consequências bastante mais graves do que as que tiveram lugar.
Por último, existe a contradição não reconhecida de que mais Parlamento Europeu significa mais democracia, assim como significa mais democracia haver mais poder nas mãos dos Estados nacionais e, de preferência nos seus parlamentos nacionais.
E tudo caminha de mãos dadas. Só pode ter passado ao lado da autora a discussão de campanha do referendo no Reino Unido. Naquelas bandas, e por muitas outras no continente, há gente que se atreve a pensar que o Parlamento Europeu não é uma extensão idêntica dos parlamentos nacionais, e que o avanço de um significa o recuo dos outros. E ainda que no final das contas estes avanços e recuos não são neutros para efeitos de "défice democrático". Vale a pena pensar nestes termos: em que medida é que a redução do "défice democrático" europeu está relacionada com a sua expansão dentro das fronteiras nacionais?
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