
Dos debates mais infindáveis sobre a justiça, e também daqueles em que se dizem mais "pós-verdades", é o do segredo de justiça e suas violações.
Vamos, mais uma vez, esquecer os erros intencionais, que temos que remeter para o campeonato da luta política, ou da luta de poderes, que não nos interessam agora. Vamos olhar para os verdadeiros erros. Aqueles que decorrem da pura e genuína ignorância. E vamos tentar desmontá-los.
Erro n.º1: "É possível haver investigação criminal sem segredo de justiça". É um disparate total. Um absurdo. Há crimes, e estatisticamente serão muitos, possivelmente a maioria, em que o segredo é desnecessário: - a agressão, os pequenos furtos ou roubos, o tráfico de droga da esquina ou do beco, a difamação ou as injúrias, e tantos outros, não precisarão, normalmente, de sigilo investigatório. Mas dizer isto não pode fazer esquecer que a criminalidade com um mínimo de organização só pode ser investigada com segredo. Há meios de obtenção de prova que dependem dele para a sua aptidão: As escutas, as buscas, alguns exames. Há outras diligências, como as detenções, em que o segredo tem também que ser garantido. E crimes como o tráfico de droga organizado, a corrupção, o tráfico de influências ou o branqueamento de capitais, a associação criminosa, o terrorismo, e tantos outros, não podem, pura e simplesmente, ser investigados com um mínimo de eficácia se for com o conhecimento dos visados. Isto é assim em Portugal e em qualquer parte do mundo. E não deixa de ser sintomático que a generalidade das vezes que se questiona o segredo de justiça seja a propósito dos chamados "crimes de colarinho branco". E se for investigação de tráfico de droga? E de uma organização criminosa tipo associativo? E se fosse uma investigação por atentado terrorista? Levantar-se-iam os mesmos detratores do segredo?
Erro n.º2: "Em certos países não há segredo e as investigações são mais justas e até, pasme-se, mais eficazes". Os Estados Unidos seriam o exemplo acabado disto. Este erro é crasso. Em todo o lado onde haja investigação há segredo. O que poderá haver ou não será um processo formal de investigação. Em Portugal, e na generalidade dos países ocidentais, o início de uma investigação marca também o início de um processo, com um conjunto de regras, de direitos e de obrigações bem definidos. Nessa fase, aqui chamada inquérito e dirigida necessariamente pelo Ministério Público, haverá ou não segredo consoante o que for avaliado e decidido em concreto. Noutros lados, os EUA serão o exemplo acabado disto, pode haver diligências de investigação que se prolongam, dirigidas por diversas entidades, policiais ou administrativas (por vezes até privadas) sem que exista um verdadeiro processo e sem que os visados tenham conhecimento do "quê", do "como" e até do "quem" os está a investigar. Há atos têm que ser autorizados por um juiz mas como diligências esparsas e avulsas. Aí, quando há processo há publicidade. Mas até haver "processo" podem correr anos de investigações, às vezes muitos anos (por favor não se diga que a investigação Maddoff, que durou muitos anos e sempre sigilosamente, é exemplo para o que quer que seja).
Erro n.º3: "O segredo de justiça, e as suas violações, permitem julgamentos da opinião pública que são um grave atentado ao bom nome e à presunção de inocência dos investigados". Às violações já lá vamos, sem sofismar a sua importância. Mas parece que há quem esqueça que vivemos num país de imprensa livre e que a imprensa pode investigar e noticiar o que entender. Quer isto dizer que pode haver, e haverá necessariamente, "julgamentos" de opinião pública perante notícias de ilícitos que envolvam determinadas pessoas, especialmente, esse é também um facto incontornável, aquelas que tenham perfil mediático elevado. Isso, para o bem e para o mal, faz parte de uma democracia com liberdade de imprensa e não é, em si, uma violação do segredo de justiça. É investigação jornalística. Só há violação do segredo quando a notícia é o conteúdo do próprio processo. Aí já não é investigação. É reprodução jornalística de uma investigação judicial secreta.
Vamos limpar da discussão estes três erros. Não há investigação sem segredo. Não há países que investiguem sem segredo. E mesmo com segredo de justiça respeitado há, e haverá sempre, "julgamentos na praça pública" se os entendermos como "notícias que atingem o nome e a imagem dos visados". E, como sempre, algumas notícias serão verdadeiras e outras não. Esse é um debate da esfera da liberdade de imprensa e não do segredo de justiça.
Limpando o horizonte destas nuvens podemos olhá-lo com uma visão minimamente desimpedida.
E existe, de facto, um problema. É claro e é grave. Há segredo de justiça que é sistematicamente violado, com atos de processos em segredo publicamente divulgados, às vezes com som e imagem. Isto, como em todos os ilícitos, tem que ser combatido de forma forte e consistente. Isto, como em todos os ilícitos, nunca se conseguirá eliminar na totalidade. E isto, como em todos os ilícitos, implica que não haja ninguém acima da lei e que não possa ser investigado. Como se previne, combate e reprime este ilícito deve ser o centro da discussão. E muito há a fazer nessa área.
Desviar a discussão para a própria existência do segredo é pôr em causa, consciente ou inconscientemente, a investigação de um conjunto alargado de crimes, o que não é compatível com um estado de direito. Ou é devolver as investigações a uma fase pré-processual e ao domínio absoluto das polícias, como acontecia antes do Código de 1988, o que seria certamente bem menos garantístico para todos os investigados.
Podemos discutir tudo. Temos é que perceber bem o que estamos a discutir e qual o caminho a que conduzem os nossos argumentos.Para poder adicionar esta notícia deverá efectuar login.
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Dos debates mais infindáveis sobre a justiça, e também daqueles em que se dizem mais "pós-verdades", é o do segredo de justiça e suas violações
Dos debates mais infindáveis sobre a justiça, e também daqueles em que se dizem mais "pós-verdades", é o do segredo de justiça e suas violações.
Vamos, mais uma vez, esquecer os erros intencionais, que temos que remeter para o campeonato da luta política, ou da luta de poderes, que não nos interessam agora. Vamos olhar para os verdadeiros erros. Aqueles que decorrem da pura e genuína ignorância. E vamos tentar desmontá-los.
Erro n.º1: "É possível haver investigação criminal sem segredo de justiça". É um disparate total. Um absurdo. Há crimes, e estatisticamente serão muitos, possivelmente a maioria, em que o segredo é desnecessário: - a agressão, os pequenos furtos ou roubos, o tráfico de droga da esquina ou do beco, a difamação ou as injúrias, e tantos outros, não precisarão, normalmente, de sigilo investigatório. Mas dizer isto não pode fazer esquecer que a criminalidade com um mínimo de organização só pode ser investigada com segredo. Há meios de obtenção de prova que dependem dele para a sua aptidão: As escutas, as buscas, alguns exames. Há outras diligências, como as detenções, em que o segredo tem também que ser garantido. E crimes como o tráfico de droga organizado, a corrupção, o tráfico de influências ou o branqueamento de capitais, a associação criminosa, o terrorismo, e tantos outros, não podem, pura e simplesmente, ser investigados com um mínimo de eficácia se for com o conhecimento dos visados. Isto é assim em Portugal e em qualquer parte do mundo. E não deixa de ser sintomático que a generalidade das vezes que se questiona o segredo de justiça seja a propósito dos chamados "crimes de colarinho branco". E se for investigação de tráfico de droga? E de uma organização criminosa tipo associativo? E se fosse uma investigação por atentado terrorista? Levantar-se-iam os mesmos detratores do segredo?
Erro n.º2: "Em certos países não há segredo e as investigações são mais justas e até, pasme-se, mais eficazes". Os Estados Unidos seriam o exemplo acabado disto. Este erro é crasso. Em todo o lado onde haja investigação há segredo. O que poderá haver ou não será um processo formal de investigação. Em Portugal, e na generalidade dos países ocidentais, o início de uma investigação marca também o início de um processo, com um conjunto de regras, de direitos e de obrigações bem definidos. Nessa fase, aqui chamada inquérito e dirigida necessariamente pelo Ministério Público, haverá ou não segredo consoante o que for avaliado e decidido em concreto. Noutros lados, os EUA serão o exemplo acabado disto, pode haver diligências de investigação que se prolongam, dirigidas por diversas entidades, policiais ou administrativas (por vezes até privadas) sem que exista um verdadeiro processo e sem que os visados tenham conhecimento do "quê", do "como" e até do "quem" os está a investigar. Há atos têm que ser autorizados por um juiz mas como diligências esparsas e avulsas. Aí, quando há processo há publicidade. Mas até haver "processo" podem correr anos de investigações, às vezes muitos anos (por favor não se diga que a investigação Maddoff, que durou muitos anos e sempre sigilosamente, é exemplo para o que quer que seja).
Erro n.º3: "O segredo de justiça, e as suas violações, permitem julgamentos da opinião pública que são um grave atentado ao bom nome e à presunção de inocência dos investigados". Às violações já lá vamos, sem sofismar a sua importância. Mas parece que há quem esqueça que vivemos num país de imprensa livre e que a imprensa pode investigar e noticiar o que entender. Quer isto dizer que pode haver, e haverá necessariamente, "julgamentos" de opinião pública perante notícias de ilícitos que envolvam determinadas pessoas, especialmente, esse é também um facto incontornável, aquelas que tenham perfil mediático elevado. Isso, para o bem e para o mal, faz parte de uma democracia com liberdade de imprensa e não é, em si, uma violação do segredo de justiça. É investigação jornalística. Só há violação do segredo quando a notícia é o conteúdo do próprio processo. Aí já não é investigação. É reprodução jornalística de uma investigação judicial secreta.
Vamos limpar da discussão estes três erros. Não há investigação sem segredo. Não há países que investiguem sem segredo. E mesmo com segredo de justiça respeitado há, e haverá sempre, "julgamentos na praça pública" se os entendermos como "notícias que atingem o nome e a imagem dos visados". E, como sempre, algumas notícias serão verdadeiras e outras não. Esse é um debate da esfera da liberdade de imprensa e não do segredo de justiça.
Limpando o horizonte destas nuvens podemos olhá-lo com uma visão minimamente desimpedida.
E existe, de facto, um problema. É claro e é grave. Há segredo de justiça que é sistematicamente violado, com atos de processos em segredo publicamente divulgados, às vezes com som e imagem. Isto, como em todos os ilícitos, tem que ser combatido de forma forte e consistente. Isto, como em todos os ilícitos, nunca se conseguirá eliminar na totalidade. E isto, como em todos os ilícitos, implica que não haja ninguém acima da lei e que não possa ser investigado. Como se previne, combate e reprime este ilícito deve ser o centro da discussão. E muito há a fazer nessa área.
Desviar a discussão para a própria existência do segredo é pôr em causa, consciente ou inconscientemente, a investigação de um conjunto alargado de crimes, o que não é compatível com um estado de direito. Ou é devolver as investigações a uma fase pré-processual e ao domínio absoluto das polícias, como acontecia antes do Código de 1988, o que seria certamente bem menos garantístico para todos os investigados.
Podemos discutir tudo. Temos é que perceber bem o que estamos a discutir e qual o caminho a que conduzem os nossos argumentos.É expressamente proibida a reprodução na totalidade ou em parte, em qualquer tipo de suporte, sem prévia permissão por escrito da Cofina Media - Grupo Cofina. Consulte as condições legais de utilização.