
Quando trazemos ao nosso discurso um exemplo (facto) da vida ou argumento, estamos a dar-lhe valor, estamos a dizer que é um ponto a termos em consideração na nossa tese. Parece-me óbvio. Os exemplos e argumentos não são trazidos ao acaso, mas para servirem uma ideia. O que significa que, frequentemente (discussões de café ou até nalguns trabalhos académicos, infelizmente), a ideia já lá está, à espera de algo que a suporte. E esse é o grande vício do Acórdão da Relação do Porto que convoca as sociedades em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte, a Bíblia (já lá vamos) e o Código Penal de 1886, assumindo que "[com] estas referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher".
Quanto à referência à Bíblia: nem sequer se tem em conta o filme "Jesus de Nazaré" e o episódio da "mulher adúltera" – há dois mil anos que o apedrejamento de adúlteras não deve ficar nada bem a quem se diz cristão (ou católico, resumindo-me ao que conheço). A referência do Acórdão tem de ser feita ao livro do Deuteronómio, acabado de escrever no século VI antes de Cristo, integrado no Antigo Testamento, nas suas lutas de poder, discussões tribais e organização familiar da época. Como se vê, uma referência muito actual, apesar de Jesus Cristo ter considerado a prática desactualizada face à sua doutrina há dois mil anos...
Finalmente, o argumento "sociedades existem" (em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte). Vou listar uma série de exemplos que se encaixam no tópico "sociedades existem", só para se perceber onde isto vai dar:
(i) Sociedades existem onde as relações entre pessoas do mesmo sexo são puníveis com a morte;
(ii) Sociedades existem onde ainda estão limitados os casamentos de pessoas com origens (étnicas ou religiosas) diferentes;
(iii) Sociedades existem onde persiste uma forte incidência de mutilação genital feminina (ainda que os respectivos Estados a tenham declarado ilegal);
(iv) Sociedades existem onde se aplica a pena de morte;
(v) Sociedades existem onde se aplica a prisão perpétua.
Nada disto é aceitável na sociedade portuguesa, nada disto merece acolhimento na Lei Fundamental Portuguesa. E como é o quadro constitucional português que o Tribunal da Relação do Porto deve aplicar, quaisquer alusões vagas a sociedades que convivem com o que nós decidimos não querer conviver, simplesmente, não faz sentido.
O ponto crítico não está em ponderar, por si só, os efeitos de uma depressão e do seu contexto na apreciação da culpa e da medida da pena; o ponto profundamente negativo deste acórdão é o peso que a deslealdade sexual da mulher assume no que se vem a considerar uma "acentuada diminuição da culpa". Não nego o efeito das vicissitudes das relações amorosas no estado anímico de cada um, contribuindo decisivamente para depressões. Tenho defendido que é o que mais importa na vida. Nem nego que, de acordo com o nosso estado anímico, inúmeras serão as vezes em que nos apetece fazer aos outros coisas nada recomendáveis, seja no trânsito, seja na dinâmica das relações pessoais ou profissionais. Mas lá está o Estado para nos "acalmar" e dizer: não é assim que se resolvem as coisas. Por muito que apeteça bater a quem trai, não o podemos fazer, nem desculpar (ainda que parcialmente) quem o fez, designadamente perante essa não necessariamente excecionalíssima circunstância da vida: a infelicidade da traição.
Não podem seguramente os tribunais; não pode sequer cada um de nós, ainda que na surdina que se esconde atrás do que sabe ser politicamente correcto.
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Por muito que apeteça bater a quem trai, não o podemos fazer, nem desculpar (ainda que parcialmente) quem o fez, designadamente perante essa não necessariamente excecionalíssima circunstância da vida: a infelicidade da traição.
Quando trazemos ao nosso discurso um exemplo (facto) da vida ou argumento, estamos a dar-lhe valor, estamos a dizer que é um ponto a termos em consideração na nossa tese. Parece-me óbvio. Os exemplos e argumentos não são trazidos ao acaso, mas para servirem uma ideia. O que significa que, frequentemente (discussões de café ou até nalguns trabalhos académicos, infelizmente), a ideia já lá está, à espera de algo que a suporte. E esse é o grande vício do Acórdão da Relação do Porto que convoca as sociedades em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte, a Bíblia (já lá vamos) e o Código Penal de 1886, assumindo que "[com] estas referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher".
Vamos aceitar que ninguém fica confortável com uma traição conjugal – senão não era traição, era relação aberta.
Dito isto, e salvo o devido respeito, há vários pontos naquele acórdão que não fazem sentido.
Quanto à referência ao Código Penal de 1886: há uma razão para a norma invocada (a que, conforme se diz no acórdão, "punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse") já não estar em vigor. Uma razão filosófica, cultural, constitucional; e não apenas de técnica jurídica. No acórdão, essa razão – que deveria ser óbvia nos dias de hoje e de ontem – não parece compreendida.
Quanto à referência à Bíblia: nem sequer se tem em conta o filme "Jesus de Nazaré" e o episódio da "mulher adúltera" – há dois mil anos que o apedrejamento de adúlteras não deve ficar nada bem a quem se diz cristão (ou católico, resumindo-me ao que conheço). A referência do Acórdão tem de ser feita ao livro do Deuteronómio, acabado de escrever no século VI antes de Cristo, integrado no Antigo Testamento, nas suas lutas de poder, discussões tribais e organização familiar da época. Como se vê, uma referência muito actual, apesar de Jesus Cristo ter considerado a prática desactualizada face à sua doutrina há dois mil anos...
Finalmente, o argumento "sociedades existem" (em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte). Vou listar uma série de exemplos que se encaixam no tópico "sociedades existem", só para se perceber onde isto vai dar:
(i) Sociedades existem onde as relações entre pessoas do mesmo sexo são puníveis com a morte;
(ii) Sociedades existem onde ainda estão limitados os casamentos de pessoas com origens (étnicas ou religiosas) diferentes;
(iii) Sociedades existem onde persiste uma forte incidência de mutilação genital feminina (ainda que os respectivos Estados a tenham declarado ilegal);
(iv) Sociedades existem onde se aplica a pena de morte;
(v) Sociedades existem onde se aplica a prisão perpétua.
Nada disto é aceitável na sociedade portuguesa, nada disto merece acolhimento na Lei Fundamental Portuguesa. E como é o quadro constitucional português que o Tribunal da Relação do Porto deve aplicar, quaisquer alusões vagas a sociedades que convivem com o que nós decidimos não querer conviver, simplesmente, não faz sentido.
O ponto crítico não está em ponderar, por si só, os efeitos de uma depressão e do seu contexto na apreciação da culpa e da medida da pena; o ponto profundamente negativo deste acórdão é o peso que a deslealdade sexual da mulher assume no que se vem a considerar uma "acentuada diminuição da culpa". Não nego o efeito das vicissitudes das relações amorosas no estado anímico de cada um, contribuindo decisivamente para depressões. Tenho defendido que é o que mais importa na vida. Nem nego que, de acordo com o nosso estado anímico, inúmeras serão as vezes em que nos apetece fazer aos outros coisas nada recomendáveis, seja no trânsito, seja na dinâmica das relações pessoais ou profissionais. Mas lá está o Estado para nos "acalmar" e dizer: não é assim que se resolvem as coisas. Por muito que apeteça bater a quem trai, não o podemos fazer, nem desculpar (ainda que parcialmente) quem o fez, designadamente perante essa não necessariamente excecionalíssima circunstância da vida: a infelicidade da traição.
Não podem seguramente os tribunais; não pode sequer cada um de nós, ainda que na surdina que se esconde atrás do que sabe ser politicamente correcto.
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