
O meu melhor amigo batia-me. Todas as semanas, durante anos, o meu melhor amigo recordava-me a necessidade de abrir o olho, de manter a guarda, de ficar de atalaia, vigia, vigia que ela vem quando menos esperas - quem, o quê? – e a vida doía-me numa canela, nas costelas, num braço, em qualquer sítio ao alcance do golpe rápido, metódico, extremoso, talvez passional.
Foi uma amizade que começou intensa, éramos nós alunos do 1° ano, turmas rivais. Num jogo de futebol como matança, fui a primeira vítima daquela vocação que exigiria pouco tempo para se tornar lendária. Joguei futebol durante muitos anos com a secreta, até para mim secreta, ambição de encontrar alguém que superasse aquele espanto inicial e limpo, mesmo com poeira. Ainda hoje os relatos divergem, sempre que encontro colegas ou adversários que disputaram esses 60 segundos de jogo, mais coisa menos coisa, após o toque para intervalo. Era essa a altura ideal para honrar o esforço de quem amarrotara papel durante a aula, envolvera-o com generosas contribuições de fita-cola e abdicara da merenda para que a bola coubesse na lancheira.
Havia um espírito, um instinto de predador à espera do melhor. Soava a campainha, a D. Antónia girava de vassoura em riste a varrer tudo o que era refractário, tudo o que almejava o proibido, e abria-se uma clareira no terreiro. Ouvia-se um baque, mais forte quando a técnica do artífice incluía fita aderente comprada na loja de ferragens. Aperfeiçoámos alguns mecanismos, como balizas para evitar a perversão do belíssimo auto-golo. A D. Antónia também reduziu o tempo de desnorte e a glória jogava-se em 45/50 segundos. Corria-se, talvez corpos completos a correr pelas escadas, estilos novos de pressa, acessórios como óculos, aparelhos para corrigir bocas e dentes de leite com ainda mais pressa a cortarem caminho no voo picado, eu a arrastar a perna com a dor ainda fresca de ontem, a última com peditório colectivo - quem é quem, quem é de quem, o meu dente não é este, stôra, esta dor é do coxo, senhor padre. Corria-se como mais tarde, em Cabinda, que ninguém fica para trás e aquela dúvida, se isto é ainda um homem, o Alferes que ia de férias a Portugal e dizia
- a minha cabeça nunca deixa África
e nós comovidos, que homem de palavra, e a alegria deles, catanas ao alto e um aos ombros, mais exuberante, quase simpático quando tirava as mãos dos bolsos, acenava e era estranho ver a mão que podia ser do Cruz em aceno de aristocrata, ou a do Figueira sempre tão casto a agitar manguitos, mas inconfundível a luva do Capitão a bater continência, e nós subitamente parados, em formação com as mãos que tínhamos
- meu Capitão.
Naquele jogo, um dos primeiros, entrei no campo atravessando a minha baliza. Levantara-se a poeira que serviria, outrora, para medir o poder de um império. Via-se mal, mas era imperioso pontapear. Caía sobre o jogador a vergonha caso terminasse o jogo sem acertar em qualquer coisa para além do vento. Era preciso pontapear. Eu estava preparado, depois de sentir a fortuna acertar-me dolorosamente no peito. A bola desse dia tinha preparos especiais, percebi logo. Prefiro pensar que matei o gesso no peito, ajustei o corpo para um remate acrobático e aconteceu. Recordo, ou inventei, uma aragem a anunciar o encanto daquela primeira manifestação de talento.
Ao longo dos anos, consegui compor quase todo o cenário em torno daquele segundo triunfal. A professora ensaiava corações de fumo na janela, cigarro equilibrado entre dois dedos da mão esquerda, enquanto a direita arranjava a franja e outra mão livre ajustava-lhe o decote. Ao crescer, cheguei a imaginar-me múltiplo, no campo e dono daquela mão, mas vi-me obrigado a abdicar de algum prazer. Permaneci no campo. Entretanto, A D. Antónia hesitava entre olhar pelos óculos ou sobre eles no momento em que o Marcelo, em salto, está a centímetros de tocar nos fios de piaçaba da vassoura, o grande troféu do recreio. Anos depois, a D. Antónia esforçar-se-ia por tornar invejável, quase voluptuosa, aquela mesma vassoura que seria o meu par na valsa do baile de finalistas. A vassoura desapareceu e alguns perguntaram se ela era boa de cama, quando a apresentaria ao pessoal - "embora a gente já a tenha comido na arrecadação" - quando seria o casamento, essas coisas estúpidas. Tenho-a em casa desde esse dia. Está a envelhecer com dignidade. Fizemos anos há dias e comprei-lhe uma peruca com franja à Sophia Loren.
O segundo triunfal, portanto, o tal segundo do advento que eu vou reconstruindo com a minúcia possível. Havia chuviscado um pouco, coisa de espirro, antes do intervalo. O calor acumulado por um Verão intenso, cheio de dias de praia para os outros que jogavam ao bate-o-pé, erguia-se do terreiro em espiral de fumo como nos filmes de Nova Iorque. Mas em Nova Iorque isso acontece quando está muito frio. Pouco interessa, o efeito era semelhante. A terra batida pelos pingos parecia retaliar. Pouco antes do toque de saída, o senhor padre entrou na sala para abençoar a turma e aproveitou para oferecer à professora um colar com a cruz. A professora parecia aquelas atletas que recebem medalhas nos Jogos Olímpicos. A diferença é que a cruz desapareceu, entalada entre a fartura que nosso senhor lhe deu, disse o senhor padre. Se calhar aquela mão que vi, ou imaginei, durante o segundo triunfal, não sei. Continua a acontecer muita coisa naquele segundo, entre acrescentos e cortes, mas a fartura da professora persiste. Agora que escrevo, vejo que o Amílcar estava a levantar a saia da Soraia e o Dinarte tirava a chucha do bolso, às escondidas, para matar o vício. Tinha olhado pouco, até hoje, para o lado direito, porque ao matar no peito a bola de gesso, girei para a esquerda a tentar um "remate em tesoura", como dizia o senhor da rádio. Claro que o milagre que aconteceu, o milagre que me leva a trabalhar sempre aquele segundo, forçou-me a um movimento contrário. Todo o movimento, mais coisa menos coisa, deu-me uma visão panorâmica, o 360 como agora se diz, o lounge 360 da minha vida ao qual regresso para recordar o meu melhor amigo que se deu a conhecer como um deus circense. O pé direito acertou-me entre a face esquerda e o pescoço, depois de tocar na bola. Limpinho limpinho aquele corte que me rasgou a pálpebra, enquanto o pé esquerdo dele me subiu pelas costelas até ao sovaco só para ameaçar o ombro que, sim senhor, correspondeu e deslocou-se. Não me lembro bem de cair, só de levar umas chapadas e uma voz distante, em pó
- a partir de hoje, ninguém mais te bate. Nem o padre. Fodo qualquer um que te bater, só tens de me dizer.
Foi uma amizade para a vida e eu compreendi que tinha de retribuir porque o meu melhor amigo precisava de espairecer. Dei-me à exclusividade. Recordo com especial orgulho aquele dia, já o Vera Cruz apontava ali na zona do Caniço, quando o meu amigo ia furibundo à casa do irmão que lhe roubou a Esmeralda. Cheguei depressa e quase perdia o Vera Cruz de tanta pancada que levei em nome do irmão. Evitou-se uma tragédia e lá fomos, ele aliviado, para a Pontinha, eu às cavalitas e a pingar o trajecto como quem deseja regressar a casa para se reabastecer de sangue. Sofri um pouco em Cabinda. Havia muita gente com quem o meu amigo espairecia.
Noite de Consoada, Cabinda 72, alguém bateu à porta da caserna. Um menino que vinha de longe, do musseque, a pedir comida. O Tigre, o cão da Companhia, não ladrou. Tinha faro especial para o perigo, era a nossa principal sentinela. Estávamos descansados e bêbados de aguardante do Porto da Cruz, a Madeira na boca. Alguns dos nossos camaradas tinham dúvidas, temiam retaliações, depois de terem fritado uns turras na frigideira, receita que ia sendo aprimorada. Mas era só um menino e o meu amigo disse-me "a gente tem de seguir o coração". Fomos os dois, levámos umas partes do perú e o menino ajudou a levar, com uns amigos adultos, o coração do meu melhor amigo, o Tigre fatiado e aqueles camaradas divididos. Deixaram-me vivo porque "alguém tem de mandar para Portugal os restos. Não queremos restos." Mas levaram a aguardente que restava.
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O meu melhor amigo batia-me. Todas as semanas, durante anos, o meu melhor amigo recordava-me a necessidade de abrir o olho.
O meu melhor amigo batia-me. Todas as semanas, durante anos, o meu melhor amigo recordava-me a necessidade de abrir o olho, de manter a guarda, de ficar de atalaia, vigia, vigia que ela vem quando menos esperas - quem, o quê? – e a vida doía-me numa canela, nas costelas, num braço, em qualquer sítio ao alcance do golpe rápido, metódico, extremoso, talvez passional.
Foi uma amizade que começou intensa, éramos nós alunos do 1° ano, turmas rivais. Num jogo de futebol como matança, fui a primeira vítima daquela vocação que exigiria pouco tempo para se tornar lendária. Joguei futebol durante muitos anos com a secreta, até para mim secreta, ambição de encontrar alguém que superasse aquele espanto inicial e limpo, mesmo com poeira. Ainda hoje os relatos divergem, sempre que encontro colegas ou adversários que disputaram esses 60 segundos de jogo, mais coisa menos coisa, após o toque para intervalo. Era essa a altura ideal para honrar o esforço de quem amarrotara papel durante a aula, envolvera-o com generosas contribuições de fita-cola e abdicara da merenda para que a bola coubesse na lancheira.
Havia um espírito, um instinto de predador à espera do melhor. Soava a campainha, a D. Antónia girava de vassoura em riste a varrer tudo o que era refractário, tudo o que almejava o proibido, e abria-se uma clareira no terreiro. Ouvia-se um baque, mais forte quando a técnica do artífice incluía fita aderente comprada na loja de ferragens. Aperfeiçoámos alguns mecanismos, como balizas para evitar a perversão do belíssimo auto-golo. A D. Antónia também reduziu o tempo de desnorte e a glória jogava-se em 45/50 segundos. Corria-se, talvez corpos completos a correr pelas escadas, estilos novos de pressa, acessórios como óculos, aparelhos para corrigir bocas e dentes de leite com ainda mais pressa a cortarem caminho no voo picado, eu a arrastar a perna com a dor ainda fresca de ontem, a última com peditório colectivo - quem é quem, quem é de quem, o meu dente não é este, stôra, esta dor é do coxo, senhor padre. Corria-se como mais tarde, em Cabinda, que ninguém fica para trás e aquela dúvida, se isto é ainda um homem, o Alferes que ia de férias a Portugal e dizia
- a minha cabeça nunca deixa África
e nós comovidos, que homem de palavra, e a alegria deles, catanas ao alto e um aos ombros, mais exuberante, quase simpático quando tirava as mãos dos bolsos, acenava e era estranho ver a mão que podia ser do Cruz em aceno de aristocrata, ou a do Figueira sempre tão casto a agitar manguitos, mas inconfundível a luva do Capitão a bater continência, e nós subitamente parados, em formação com as mãos que tínhamos
- meu Capitão.
Naquele jogo, um dos primeiros, entrei no campo atravessando a minha baliza. Levantara-se a poeira que serviria, outrora, para medir o poder de um império. Via-se mal, mas era imperioso pontapear. Caía sobre o jogador a vergonha caso terminasse o jogo sem acertar em qualquer coisa para além do vento. Era preciso pontapear. Eu estava preparado, depois de sentir a fortuna acertar-me dolorosamente no peito. A bola desse dia tinha preparos especiais, percebi logo. Prefiro pensar que matei o gesso no peito, ajustei o corpo para um remate acrobático e aconteceu. Recordo, ou inventei, uma aragem a anunciar o encanto daquela primeira manifestação de talento.
Ao longo dos anos, consegui compor quase todo o cenário em torno daquele segundo triunfal. A professora ensaiava corações de fumo na janela, cigarro equilibrado entre dois dedos da mão esquerda, enquanto a direita arranjava a franja e outra mão livre ajustava-lhe o decote. Ao crescer, cheguei a imaginar-me múltiplo, no campo e dono daquela mão, mas vi-me obrigado a abdicar de algum prazer. Permaneci no campo. Entretanto, A D. Antónia hesitava entre olhar pelos óculos ou sobre eles no momento em que o Marcelo, em salto, está a centímetros de tocar nos fios de piaçaba da vassoura, o grande troféu do recreio. Anos depois, a D. Antónia esforçar-se-ia por tornar invejável, quase voluptuosa, aquela mesma vassoura que seria o meu par na valsa do baile de finalistas. A vassoura desapareceu e alguns perguntaram se ela era boa de cama, quando a apresentaria ao pessoal - "embora a gente já a tenha comido na arrecadação" - quando seria o casamento, essas coisas estúpidas. Tenho-a em casa desde esse dia. Está a envelhecer com dignidade. Fizemos anos há dias e comprei-lhe uma peruca com franja à Sophia Loren.
O segundo triunfal, portanto, o tal segundo do advento que eu vou reconstruindo com a minúcia possível. Havia chuviscado um pouco, coisa de espirro, antes do intervalo. O calor acumulado por um Verão intenso, cheio de dias de praia para os outros que jogavam ao bate-o-pé, erguia-se do terreiro em espiral de fumo como nos filmes de Nova Iorque. Mas em Nova Iorque isso acontece quando está muito frio. Pouco interessa, o efeito era semelhante. A terra batida pelos pingos parecia retaliar. Pouco antes do toque de saída, o senhor padre entrou na sala para abençoar a turma e aproveitou para oferecer à professora um colar com a cruz. A professora parecia aquelas atletas que recebem medalhas nos Jogos Olímpicos. A diferença é que a cruz desapareceu, entalada entre a fartura que nosso senhor lhe deu, disse o senhor padre. Se calhar aquela mão que vi, ou imaginei, durante o segundo triunfal, não sei. Continua a acontecer muita coisa naquele segundo, entre acrescentos e cortes, mas a fartura da professora persiste. Agora que escrevo, vejo que o Amílcar estava a levantar a saia da Soraia e o Dinarte tirava a chucha do bolso, às escondidas, para matar o vício. Tinha olhado pouco, até hoje, para o lado direito, porque ao matar no peito a bola de gesso, girei para a esquerda a tentar um "remate em tesoura", como dizia o senhor da rádio. Claro que o milagre que aconteceu, o milagre que me leva a trabalhar sempre aquele segundo, forçou-me a um movimento contrário. Todo o movimento, mais coisa menos coisa, deu-me uma visão panorâmica, o 360 como agora se diz, o lounge 360 da minha vida ao qual regresso para recordar o meu melhor amigo que se deu a conhecer como um deus circense. O pé direito acertou-me entre a face esquerda e o pescoço, depois de tocar na bola. Limpinho limpinho aquele corte que me rasgou a pálpebra, enquanto o pé esquerdo dele me subiu pelas costelas até ao sovaco só para ameaçar o ombro que, sim senhor, correspondeu e deslocou-se. Não me lembro bem de cair, só de levar umas chapadas e uma voz distante, em pó
- a partir de hoje, ninguém mais te bate. Nem o padre. Fodo qualquer um que te bater, só tens de me dizer.
Foi uma amizade para a vida e eu compreendi que tinha de retribuir porque o meu melhor amigo precisava de espairecer. Dei-me à exclusividade. Recordo com especial orgulho aquele dia, já o Vera Cruz apontava ali na zona do Caniço, quando o meu amigo ia furibundo à casa do irmão que lhe roubou a Esmeralda. Cheguei depressa e quase perdia o Vera Cruz de tanta pancada que levei em nome do irmão. Evitou-se uma tragédia e lá fomos, ele aliviado, para a Pontinha, eu às cavalitas e a pingar o trajecto como quem deseja regressar a casa para se reabastecer de sangue. Sofri um pouco em Cabinda. Havia muita gente com quem o meu amigo espairecia.
Noite de Consoada, Cabinda 72, alguém bateu à porta da caserna. Um menino que vinha de longe, do musseque, a pedir comida. O Tigre, o cão da Companhia, não ladrou. Tinha faro especial para o perigo, era a nossa principal sentinela. Estávamos descansados e bêbados de aguardante do Porto da Cruz, a Madeira na boca. Alguns dos nossos camaradas tinham dúvidas, temiam retaliações, depois de terem fritado uns turras na frigideira, receita que ia sendo aprimorada. Mas era só um menino e o meu amigo disse-me "a gente tem de seguir o coração". Fomos os dois, levámos umas partes do perú e o menino ajudou a levar, com uns amigos adultos, o coração do meu melhor amigo, o Tigre fatiado e aqueles camaradas divididos. Deixaram-me vivo porque "alguém tem de mandar para Portugal os restos. Não queremos restos." Mas levaram a aguardente que restava.
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